“Tomar como preventivo,
internamente, qualquer sal de QUININO,
nas doses de
25 a 50 centigramos por
dia e de preferência no momento das refeições.”
De “Conselhos
ao Povo” da Inspectoria de Hygiene em
São Paulo, na epidemia da
Influenza
Hespanhola ( 1918)
O presidente do Brasil , inspirado
por seu congênere Trump, tem se mostrado um garoto propaganda da Cloroquina. Desde
o início da pandemia da Covid-19, vem
propalando , publicamente, os efeitos pretensamente fabulosos do medicamento. O laboratório químico do
Exército tem produzido comprimidos
cloroquina suficientes para tratar as próximas pandemias: mais de dois
milhões estão estocados. A produção aumentou, até abril, mais de oitenta vezes.
Dois ministros da saúde foram defenestrados
do cargo por demonstrarem restrições ao
uso do remédio, ainda sem comprovação científica e com fortes indícios de ineficácia. Entidades
médicas adiantaram-se em liberar os profissionais na prescrição da cloroquina e
seus derivados, desde que com o consentimento do paciente. A classe médica tem
se sentido pressionada a prescrever ante o pânico da população assombrada com
as mais de 70.000 mortes da “gripezinha” até aqui. Nas últimas semanas, outras
drogas tidas como milagrosas como a ivermectina desapareceram das prateleiras
das farmácias. Pessoas incentivadas pelo disse-que-disse correram para as
drogarias e patrões compraram um volume
gigantesco de comprimidos e estão
distribuindo com seus funcionários, como prevenção à Covid-19. Algumas prefeituras têm feito o mesmo. À medida que
algumas drogas vão sendo desmoralizadas, outras tantas, igualmente sem base
científica, como a azitromicina, o zinco, a nitazoxanida têm
inundado o universo mítico da população, atordoada, em busca de um milagre.
A história da
Medicina está repleta de casos similares. Não há nada de novo na reação de
pavor ante à perspectiva de morte. Em todas as epidemias, a música se repete.
Na de Cólera, no Cariri, em meados do Século XIX, utilizavam-se o limão, a
quina, a casca de pau ferro, o mentrasto e hortelã como terapêutica. Na Gripe
Espanhola em 1919, preconizavam também o uso do quinino ou da quina. Por
incrível que possa parecer, um primo próximo da Cloroquina (o eterno retorno). A
Medicina evoluiu absurdamente nestes 150 anos, mas o comportamento humano é bem
menos moldável e evolutivo.
Há
uma pergunta que não cansamos de fazer. Como, com tanto avanço na arte médica,
com o domínio amplo do viés científico baseado em evidências, como é possível os
profissionais médicos de hoje, ampararem-se em argumentos do mesmo empirismo
que dominou a Medicina por mais de vinte séculos, para justificarem a
utilização de medicamentos de efeito obscuro, nas epidemias do Século XXI ?
Dados estatísticos recentes demonstram que 89% dos médicos brasileiros
prescrevem Cloroquina em casos graves da doença. Muitos destes são profissionais da mais alta
qualificação, muitos professores universitários e com titulação acadêmica de
encher os olhos. E por que entidades médicas cegam e, simplesmente, assinam
embaixo , permitindo experimentalismo in anima nobili , um desvio que quebra
todas as amarras da metodologia ? Hoje presenciamos remédios prescritos por
políticos e um ministério da saúde tocado por militares sem nenhuma formação
técnica. Seria como convocar o Dr. Drauzio Varela para comandar a X Região
Militar!
Vamos
tentar dissecar, por partes, a questão. Primeiro, os médicos, diante de tamanha
calamidade, bebem , também, do mesmo pavor e desnorteamento que atinge a
população. Difícil combater um inimigo que conhecemos pouco e para o qual não
temos armas efetivas. Usar apenas medidas de suporte, sintomáticos, parece pouco e inadequado. Remédios , por mais
inócuos que sejam, trazem um pouco de alívio, tanto para os pacientes como para
os profissionais que se sentem tranquilizados, acreditando que estão exercendo
seu poder de cura. Estando todos igualmente enganados e crédulos, baixa uma
aura de poder e de eficácia.
Mas
existe uma razão mais profunda e filosófica envolvendo a questão . A História,
mais uma vez, ilumina o caminho. No Século XIX, mesmo antes de Pasteur, duas
teorias explicavam as epidemias. Uma , chamada de Infecciosa, vinha desde o
Século XVI e explicava a contaminação através dos Miasmas .Estes seriam emanações mortíferas liberadas pela
decomposição de matéria orgânica, oriundas do pântanos, lagos e
cemitérios e que, acreditava-se, contaminavam a atmosfera e as pessoas. A outra, Contagionista, rezava que as
epidemias passavam de pessoa a pessoa, como parecia visível na Varíola, por
exemplo. A Teoria Miasmática sempre foi melhor aceita pelos profissionais na
época. Pesquisadores acreditam que era muito mais palatável economicamente.
Colocando a culpa em fatores incontroláveis e misteriosos, evitava-se de
orientar a quarentena. Acontecessem por contágio, viria naturalmente medidas de
isolamento social e, claro, suas repercussões financeiras. Claro que esta visão
era perfeitamente econômica e comercial e que inclusive orientou a Medicina
Sanitária no Brasil do início do Século XX, centrada no Campanhismo, em medidas
de combate a vetores, mas em nenhum momento preocupando-se com a miséria e os fatores
sociais, principais motores das nossas
endemias. Usava-se o inseticida para matar o barbeiro nas casas de taipa, sem
questionar a insalubridade marcante das moradias.
Quando
Bolsonaro diz que a Cloroquina é uma cura certa, quando os patrões e prefeitos distribuem a
ivermectina para prevenir a Covid-19, eles repetem a mesma cantilena. Querem
convencer a todos que ficarão imunes se tomarem o remédio e, se por acaso,
pegarem, têm um tratamento pronto e garantido.
Sendo assim, não precisam se afastar, se cuidar, podem trabalhar e produzir sem
receio nenhum. Os médicos, na sua maioria, dos segmentos mais abastados da sociedade,
inconscientemente, tomam o mesmo barco. É que alguém já disse que nós agimos e
pensamos usando como reflexo a nossa classe social. Hipócrates, hoje, ficaria em dúvida se levaria oferendas ao
altar de Asclépio ou de Hermes. Os rituais
e as crenças mudaram, desde
que os doutores saíram da ilha de Kós e
se espalharam pelo mundo.
Crato, 08 de Julho de 2020
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