A sensação é
de que tinha sido tomado por um transe, como se aos sons cadenciados do batuque
tivesse baixado o caboclo. Uma estranha certeza invadiu lhe a alma, uma
leveza quase que impalpável , um bem estar só minimamente perceptível. Como se
tivessem-lhe aberto as grades da prisão. Aquele ar de quem recebeu aviso de
férias, aquela fragrância de sexta feira à noite, como se o carcereiro lhe
gritasse o “Teje Solto!” Dominou-lhe a atmosfera de junho e julho no Nordeste brasileiro, quando os céus
se iluminavam de fogos e de riscos de balões, as noites roubavam um pouco o
frio nórdico e se abrasavam nas fogueiras dos terreiros e o cheiro do milho
assado e do pé-de-moleque era um ciclone solapando desejos e dietas. Envolvido por aquela aura inexplicável, Valírio
saiu como que vagando por um destino incerto, mas incompreensivelmente sabido.
De repente,
viu-se transpondo o grande portal da velha Exposição do Crato. Fitou mais de um
vez o grande pórtico para ter certeza absoluta. E lá estava, em letras imensas:
69ª Exposição Centro-Nordestina de
Animais e Produtos Derivados- 2020. Olhou, novamente, para ter certeza
absoluta de que não se tratava de uma miragem e soletrou: 69ª Exposição 2020 ! Respirou aliviado ao certificar-se de que
tinha desaparecido a denominação de EXPOCRATO. Para Valírio, aquela mudança tinha
sido um divisor de águas. Desde que a Exposição se transformara numa insulsa
EXPÔ, as coisas nunca mais foram as mesmas. E foi extasiado que atravessou o portão,
espremido em meio a uma imensa turbe tão
brasileira: brancos, pardos, negros, sararás, pobres e
ricos, grã-finos e vaqueiros.
Os
galpões estavam repletos de animais que eram a principal atração, pasmem vocês
! Nas vielas do parque, estranhamente ainda não reformado, espalhavam-se
incontáveis vendedores: roletes de cana, brinquedos artesanais sem o made in
china, filhós em balaios, tapiocas, pipoca, bombons, alfenins , o cachorro
quente de Enoque estava estabelecido numa guritazinha logo próximo à entrada
principal. Os meninos se apinhavam em frente aos vendedores de bolas de assopro
e bastava um descuido, escapado o cordãozinho das mãos, subiam elas aos céus sob o choro desesperado
dos guris. Mas logo se acalmavam nos parquinhos que naquele ano tinham preço
bonificado: cinquenta centavos por rodada.
De
repente, um boi se soltou de um dos galpões e foi aquele desespero, um
salve-se-quem puder danado: alpinismo em
árvores e mourões. De um lado, numa das barracas rústicas, um vendedor
ambulante comenta com outro que naquele ano não cobraram nada deles e o dono da
barraca confirma: o preço do terreno também foi bem baratinho, um incentivo
para os pequenos comerciantes !
As barracas
de palha, empilhadas de gente, sentada ou de pé à beira do balcão, acomodavam pessoas de todas as classes
sociais. Bebidas e tira-gostos eram
servidos de todas as marcas, ao bel prazer da freguesia: do caviar à buchada,
da pinga do brigadeiro ao whisky escocês. Lá embaixo, o Inferninho estava em festa, um som
tresloucado e alto por cada barraca. O amor derramava-se em juras saltadas de
línguas trôpegas, em apalpos e fugas em busca do Cafundó. Às vezes o amor
era doado no varejo, vezes outras negociado no grande balcão de negócios em que
se transformara o mundo.
E eram muitos
os palcos. No picadeiro , terminadas os embates pecuários, um sanfoneiro, acompanhado de um zabumba e um
triângulo, lembrava os bons tempos de Gonzagão
no parque. Do outro lado, Mestre Aldenir
dançava o seu Reisado, com sua Trupe, sob o olhar de uma vasta plateia e de
Dona Edite do Coco que já aguardava a hora de puxar a dança. Numa esquina um
aboiava, na outra um violeiro pinicava a viola, no outro extremo um bêbado
recitava Patativa. Pras bandas do Inferninho, uma grande latada abrigava um Forró típico de
Pé-de-Serra, à moda da Casa Grande de Seu Elói, um rela-bucho desenfreado.
Contrabalançando os páramos celestiais, havia, no lado oposto, um palco com
música Gospel para os crentes e, num outro pólo, um animadíssimo Bar do Reggae,
com vários malucos belezas entoando o “I Wanna Love You”. Num outro ponto, uma barraca animadíssima juntava
o pessoal da seresta, comemorando a Volta do Boêmio, no seu eterno retorno. E era tão grande o parque, que era possível um outro local com música dos
Anos 60 e sua Festa de Arromba, embalada por Batista. E também o Paraíso do
Brega que acolhia um sem número de fãs com a bandinha puxando Amado Batista e
Reginaldo Rossi, bem prá lá das margens
do Inferninho. E a Turma do Rock descabelava-se , testando a labirintite, ao
som do Iron Made, puxado pelo “Na Cacunda”, num cantinho esfumaçado e mais reservado da
Exposição.
Havia ainda
um palco maior, próximo à saída, para a Vila Jubilar. Ali, uma multidão curtia
o som do que há de melhor no Cariri e no nosso universo: Abidoral Jamacaru,
João do Crato, Luiz Carlos Salatiel, Pachelly, Luiz Fidelis, Zé Nilton, Ranier Oliveira, Calazans Calou, Nicodemos, Dihelson
Mendonça, Lifanco, Jairo Starkey, Ibbertson Nobre.
Todos
felizes, um parque para todos os gostos e todos os bolsos. Viu alguém
perguntando se nesse ano não ia ter aqueles shows do Forró de Isopor e do
Breganejo. Alguém disse que tinham montado uma estrutura na pras banda do
Palmeiral e estavam cobrando ingressos caríssimos para quem quisesse e tinha
uma ruma de abestado que resolvera fazer sua Exposição por lá. Bom apetite ! Aquela
Exposição era a que ele sonhara: numa metade o Inferninho, na outra
metade o paraíso. Alguns policiais
dormiam pelos cantos por falta de serviço. Mas alegria de pobre dura pouco. De repente,
despertou do sonho. Sentiu uma fisgada
perto do cotovelo. Abriu os olhos e estranhou quando viu uma mulher de branco, mascarada,
segurando seu braço. Pensou consigo: meu
Deus ! Foi porre ? Onde arrumei essa trepeça ?
Valírio
juntou forças e perguntou:
--- É um
pique, é ? Tamo no show de Abidoral ? Na Exposição ?
Só então
entendeu, quando ela ríspida explicou:
--- Que Exposição ? Tu tá doido ? Em ano de pandemia
? De Lockdown ? Tu tá é com muita febre ! Isso é delírio ! Sou a enfermeira !
Vou fazer o remédio !
--- Oxe !
Delírio, não, meu nome é Valírio ! E
quem me trouxe pra cá ?
--- O Senhor
tá na UPA ! Você num queria não, meu amigo, mas você foi COVIdado ?
Crato, 16 de Julho de 2020
2 comentários:
Parabéns, Zé Flávio!
Descrição melhor de um parque de outrora não pode existir.
Abraço, Manel ! Ainda bem que tenho um leitor !
Postar um comentário