sexta-feira, 1 de maio de 2020

As Terras de Zoar







“Quando Ló chegou a Zoar, o sol já havia nascido sobre a terra.

 Então o Senhor, o próprio Senhor, fez chover do céu

 fogo e enxofre sobre Sodoma e Gomorra.

 Assim ele destruiu aquelas cidades e toda a planície,
 com todos os habitantes das cidades e a vegetação.
 Mas a mulher de Ló olhou para trás e
se transformou numa coluna de sal.

Gênesis 19: 23-26
                                              
                                              
 Pense bem!  Parece que, de tempos em tempos, a natureza precisa fazer uma formatação no HD do mundo para deletar programas que se tornaram obsoletos, vírus que se instalaram, sorrateiramente, nas suas entranhas , e o lixo que é a borra final acumulada por todas as  ações humanas. Como uma freada brusca para rearrumar as bagagens do carro.  O dilúvio, Sodoma & Gomorra, guerras, pragas alternaram-se, na nossa história, desde que aquele primeiro símio resolveu descer da árvore e firmar-se em dois pés nas savanas da África. Neste início de 2020, vivemos um desses tempos intermitentes  de Control-Alt-Del. Basta olhar ao nosso redor e perceber, em meio à mortandade epidêmica, o fogo e o cheiro de enxofre!
                                   O trabalho exaltado pela sociedade ( “O Trabalho Liberta” estava escrito na entrada de Auschwitz) , num átimo, perdeu sua importância e o ócio, o confinamento ( o oposto da liberdade) passou a ser a pedra de toque nesta nova era. As máscaras , antes ligadas ao banditismo ou à dissimulação, estranhamente passaram a ser utensílios da mais alta sofisticação e exemplo de cuidado, autopreservação e solidariedade. Dizer, hoje, para uma criatura: “Você é um mascarado!” , já não é ofensa, mas um elogio. Olhos bonitos, mesmo em bocas murchas e  banguelas ( agora escondidas pelas máscaras) ,  num instante, passaram a ter vantagem , antes totalmente ignorada. Pessoas que se nos acercassem, com cheiro de álcool, meses atrás, viam-se ,imediatamente, rechaçados com desdém  e ,  hoje, são aceitos de bom grado, tidos como cuidadosos e saudáveis.
                                   Ninguém mais reclama, também, de amigos e amantes, com aquela frase típica e icônica das D.R.´s : “Você anda muito distante, não sei o que está acontecendo!”. Distanciamento , nestes dias covídicos,  é sinal de amor, de precaução e desvelo.
                                   Na modernidade, o uso da tecnologia da internet, do smartphone e dos computadores passaram a ser vistos como verdadeiros vilões no afastamento das criaturas da vida real e de oferecê-las um universo virtual e ilusório. Pois agora, amigos, a tecnologia , em época corônicas , passou a ser a nossa salvação contra o tédio, a possibilidade de contatar parentes e amigos, sem risco do contágio e matar um pouco a solidão das quatro paredes,  com a TV, a Netflix, a Internet. E mais: namorados se amassam , nestes dias , virtualmente, ( para sossego dos pais) , trocando afagos e nudes pelo Whatsapp , sem o risco de doenças sexualmente transmissíveis e gravidez!
                                   Um dos mais achincalhados personagens das histórias bíblicas, Pilatos, o Moro romano,  em dias atuais, toma ares de visionário e de profeta. O ato de “Lavar as Mãos” perdeu aquela sua aura de indecisão, titubeio, do “em cima do muro”  e de  tirar a retaguarda da reta. Pilatos ensinava a todos, visionariamente, -- quem diabos poderia imaginar?-- a importância de se prevenir contra epidemias e moléstias !
                                   E a reviravolta, nesse mundo,  foi tão grande que a gasolina baixou! Quem se lembra de uma novidade dessas? Gasolina abaixo de 3 ? Até aqui, que se saiba,  só baixavam no Brasil: Caboclo em Terreiro e pinta de velho ! Só no Crato mesmo !
                                   Os indivíduos apegavam-se, até bem pouco, ao mundo  externo. A casa era um refúgio para as noites e uma pousada para os fins de semana. Súbito, passaram a se ligar no microcosmo, onde a vida até então não palpitava. Pra que tantas tralhas acumuladas em casa ?  O taco de beisebol pra quem nunca soube jogar; panelas de grife pra quem comia no trabalho; cd´s e dvd´s mofando no móvel da sala. Presentemente,  já dá para ver o sorriso dos filhos, as curvas da esposa; as flores e frutos do maracujá que pendem das pérgulas  da garagem.
                                   Governos, também, afeitos ao cada um por si e Deus e o diabo por todos, descobriram que existem seres humanos totalmente invisíveis ao Estado. Tanto quanto os vírus!  Eles, mera massa de manobra em palanques eleitorais, necessitam de apoio, de assistência social. Vulneráveis , estão mais susceptíveis do contágio próprio, mas também, é bom não esquecer: de levar a moléstia para os berços de ouro. Aos tantos que criaram um Estado Máximo para si mesmos e  sonham com o Estado Mínimo para os outros, acordaram. É  que ele, ínfimo,  já está presente nas favelas, nos moradores de rua, nos grotões esquecidos do país e que perfazem o grosso da população brasileira. Se Estado Mínimo resolvesse o problema da humanidade, o país seria o novo Shangrilá.
                                   Ao Brasil revelou-se,  nesse 2020  que existem , sim profissões essenciais: profissionais de saúde, coveiros, caminhoneiros, maqueiros, socorristas, agricultores, professores, garis,  cozinheiros e muitas outras. Por que estas profissões tidas como essenciais, responsáveis diretas por nossa sobrevivência, não percebem salários e proventos dignos da essencialidade  do seu ofício ? Merecem palmas, sim, mas por que não o reconhecimento financeiro à altura da nobreza da sua ação ?
                                   A pandemia deslindou, ainda, o malefício reiterado  dos homens para com a sua Casa Planetária. Abruptamente, com o isolamento forçado,  caiu a poluição, diminui o buraco na camada de ozônio, animais passaram a circular, livremente nas ruas e alamedas. Por incrível que possa parecer, inesperadamente, o sonho de consumo de todos deixou de ser o dólar, a roupa de grife, o carro importado e fixou-se -- quem diria ?-- num item simples e desapercebido até então: o Ar. É ele , no momento, o artigo de luxo mais cobiçado.  E até figuras totalmente insensíveis e alheias ao sofrimento do outro começaram a ter estranhas atitudes solidárias. É como se de repente, após a expulsão, os descendentes de Adão e Eva fossem , novamente, anistiados no paraíso.
                                   Sempre é bom lembrar que tudo aconteceu num piscar de olhos, causado pela mais elementar das formas biológicas. Um bichinho minúsculo e invisível e que  teve o  poder de mudar radicalmente a superfície terrestre.
                                   Passado o susto, o mundo não será o mesmo. A madame confinada olhará desesperada para o batom que já não tem utilidade,  com o magenta escondido detrás da máscara. Observará as joias e os diamantes brilhantes  sem  significado pois não tem  para quem mostrar e para quem se gabar ! A grã-fina sabe que um outro mundo está ardendo atrás de nós e que  iremos todos para as novas terras de Zoar. Novas paisagens e costumes deitam-se logo ali  à nossa frente.  Quer  olhar para trás, sonhar com Sodoma & Gomorra,  agora incendiadas ? Cuidado madame: há sempre o risco de transformar-se em estátua de sal como um dia aconteceu com  a mulher de Ló.

Crato, 30/04/20


2 comentários:

Sandra disse...

Textos bem escritos, criativos, críticos e atuais. Amo!!!

jflavio disse...

Grato `Sandra pelo comentário !