Para Né Catingueira o mundo tinha limites claros: não
ultrapassavam as fronteiras do Pai Mané. Ah ! Existia, sim, uma nesga de universo ainda , que se
estendia até ao Crato e às terras sagradas do Padim. Mas aí já era coisa de
lonjura, terra das estranjas como dizia ele. Cilistrino Mangabeira, seu vizinho
e compadre, levava umas frutas e hortaliças para vender nas feiras do Cariri e
foi ele que trouxe aquela notícia. O povo andava adoecendo e morrendo feito boi
que bebia água e corria em roça de Tinguí. Uma doença vinda das outras beiradas
da terra, um lugar de gente de olho puxado como se tivesse o tempo todo com
dordolho. Cilistrino disse que só agora entendeu aquela roga de praga : “Vá pra China ! A moléstia parecia um “defruxo”, mas dava um puxado danado e o cabra morria sem
fôlego, como estivesse se afogando em açude barrento.
Né, que vivia
puxando terra pros pés, na rocinha, não viu diferença no mundo. O inverno tinha
sido bom, o paiol estava cheinho e tinha um criatoriozinho de galinha e de bode que dava pro gasto. Já o
compadre Cilistrino sentiu o baque. Não tinha mais onde vender as mangas, as
pitombas, o cheiro verde, o alface.
Catingueira, no entanto, como todo pobre, mostrou-se solidário. Enquanto
tiver paiol, meus amigos não passam necessidade ! Depois de uns quinze dias de aperto,
Cilistrino deu a boa notícia. O governo ia liberar uns seiscentos reais para
ajudar os que andavam mais lascados do que facho de caçador de tatu. Né,
experiente, cismou.
---
Governo dando alguma coisa ? E ele entende lá desse ramo? Num só faz é tomar , não ? Vai ter eleição, é ? Cilistrino, Cilistrino ! Abra do olho, homem
de Deus ! Ele tá querendo é levar matuto
pro cheiro do queijo !
A partir daí
começou a via sacra para receber o tutu. Primeiro tinha que entrar numa tal de
internet, usar um aplicativo ! Que diabos é isso ? Esse bicho é raceado com
arupemba, cabaça, aribé ? Depois que pagaram uma propina para uns pracianos
resolverem a pendenga, os compadres
tiveram que dormir na fila por umas três noites. E Né vaticinou novamente:
--- Benefício
vindo de governo dá popa de todo jeito ! É contramão, todavia, Cilistrino ! É mais difícil que exame do ,
ave-maria três vezes, tal de Bosonaro ! Pra botar a mão na merreca, tem que lavar o fiofó em nove água !
Tiveram que
comprar umas máscaras pra poder ficar na fila da Caixa, o segurança exigiu.
Quando Catingueira viu aquele mundo de gente mascarado, avisou ao amigo que a
conclusão que tirava é que o governo tinha certeza que aquilo era um assalto,
por isso mesmo tiveram que vir tudo daquele jeito para, depois, não poderem ser
identificados.
Finalmente
conseguiram arrancar, a ferro, o dinheiro do governo. Prevenidos, gastaram tudo
no mesmo dia , numa feira grande que entocaram em casa. A ordem, dessa vez,
veio do mascate Cilistrino:
--- Compadre,
vamos gastar logo a merreca toda ! Esmola grande , na bacia : cego desconfia ! Vai ver que esse governo se
arrepende e resolve passar marcha ré !
Dias depois,
uns estudantes chegaram no Pai Mané trazendo a informação privilegiada que o
governo tinha decretado no Crato o Lock-down. Catingueira procurou, rápido, o
compadre e resolveram ir imediatamente para a cidade. Arriaram os burros , na
manhã seguinte, e partiram ! Quando chegaram na ponte da Batateira deram com
uma tropa da polícia. Já ficaram desconfiados, como vira-lata em noite de São João. Pensaram
em correr, mas entenderam que seria pior: a polícia tinha motos velozes e rápido os
alcançaria. Que jeito ! Enfrentaram o perigo e esperaram chegar a vez. O guarda
ao vê-los, meio pálidos e trêmulos, perguntou o que eles iam fazer no Crato,
pois estava proibido entrar sem uma razão clara e justificável.
--- O que é
que vocês vêm fazer aqui no Crato ?
Cilistrino, mais
desasnado, com voz de camelô, tentou desenrolar:
--- Seu
guarda, nós já recebemos o dinheiro do governo e agora soubemos que vai ter
mais e viemos correndo !
O militar
informou que teria outra parcela, sim, mais só dali a um mês. Tivessem
paciência !
Cilistrino disse que soube que tinha mais uma ôiazinha,
antes da segunda parcela.
--- Que ôia,
seu Cilistrino, eu não tô sabendo disso não!
--- Oxe! Seu
guarda ! Não se faça de abestado, não ! Nós somos matuto, mas num somos
lesados, viu ! Agora saiu o LUQUITAL, o senhor num tá sabendo, não ?
Rindo, o
soldado tentou explicar que o nome era uma ingrisia: Loquedau. Aquilo era uma ordem do governo para todo
mundo ficar preso, sem transitar pelas ruas, para evitar que o vírus se
espalhasse. Não houve tempo dos compadres ouvirem direito. Presos ? Saíram numa desabalada
carreira, saltaram a ponte e ganharam o areal do Rio Batateiras. O soldado
ainda ouviu o comentário de Catingueira, antes de dobrarem a primeira curva do
rio.
--- Corre,
compadre, corre ! Eles querem é prender nós ! Bem logo vi que iam jogar a culpa
dessa doença em cima dos lascados que receberam os seiscentos ! Os seiscentos mile cão! Eu num disse que tinham armado era
um fojo pra nós ! ?
Crato, 15/05/20
2 comentários:
Muito bom.kkkk
Muito bom
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