sexta-feira, 15 de maio de 2020

Luquital





Para Né  Catingueira  o mundo tinha limites claros: não ultrapassavam as fronteiras do Pai Mané. Ah ! Existia,  sim, uma nesga de universo ainda , que se estendia até ao Crato e às terras sagradas do Padim. Mas aí já era coisa de lonjura, terra das estranjas como dizia ele. Cilistrino Mangabeira, seu vizinho e compadre, levava umas frutas e hortaliças para vender nas feiras do Cariri e foi ele que trouxe aquela notícia. O povo andava adoecendo e morrendo feito boi que bebia água e corria em roça de Tinguí. Uma doença vinda das outras beiradas da terra, um lugar de gente de olho puxado como se tivesse o tempo todo com dordolho. Cilistrino disse que só agora entendeu aquela roga de praga  : “Vá pra China !  A moléstia parecia um “defruxo”,  mas dava um puxado danado e o cabra morria sem fôlego, como estivesse se afogando em açude barrento.
                                   Né, que vivia puxando terra pros pés, na rocinha, não viu diferença no mundo. O inverno tinha sido bom, o paiol estava cheinho e tinha um criatoriozinho de  galinha e de bode que dava pro gasto. Já o compadre Cilistrino sentiu o baque. Não tinha mais onde vender as mangas, as pitombas, o cheiro verde, o alface.  Catingueira, no entanto, como todo pobre, mostrou-se solidário. Enquanto tiver paiol, meus amigos não passam necessidade !  Depois de uns quinze dias de aperto, Cilistrino deu a boa notícia. O governo ia liberar uns seiscentos reais para ajudar os que andavam mais lascados do que facho de caçador de tatu. Né, experiente,  cismou.
                                   --- Governo dando alguma coisa ? E ele entende lá desse ramo?  Num só faz é tomar , não ?  Vai ter eleição, é  ? Cilistrino, Cilistrino ! Abra do olho, homem de Deus ! Ele tá querendo é  levar matuto pro cheiro do queijo !
                                   A partir daí começou a via sacra para receber o tutu. Primeiro tinha que entrar numa tal de internet, usar um aplicativo ! Que diabos é isso ? Esse bicho é raceado com arupemba, cabaça, aribé ? Depois que pagaram uma propina para uns pracianos resolverem a pendenga,  os compadres tiveram que dormir na fila por umas três noites. E Né vaticinou novamente:
                                   --- Benefício vindo de governo dá popa de todo jeito ! É  contramão, todavia,  Cilistrino ! É mais difícil que exame do , ave-maria três vezes,   tal de Bosonaro ! Pra botar a mão na merreca,  tem que lavar o fiofó em nove água !
                                   Tiveram que comprar umas máscaras pra poder ficar na fila da Caixa, o segurança exigiu. Quando Catingueira viu aquele mundo de gente mascarado, avisou ao amigo que a conclusão que tirava é que o governo tinha certeza que aquilo era um assalto, por isso mesmo tiveram que vir tudo daquele jeito para, depois, não poderem ser identificados.
                                   Finalmente conseguiram arrancar, a ferro, o dinheiro do governo. Prevenidos, gastaram tudo no mesmo dia , numa feira grande que entocaram em casa. A ordem, dessa vez, veio do mascate Cilistrino:
                                   --- Compadre, vamos gastar logo a merreca toda ! Esmola grande , na bacia :  cego desconfia ! Vai ver que esse governo se arrepende e resolve passar marcha ré !
                                   Dias depois, uns estudantes chegaram no Pai Mané trazendo a informação privilegiada que o governo tinha decretado no Crato o Lock-down. Catingueira procurou, rápido, o compadre e resolveram ir imediatamente para a cidade. Arriaram os burros , na manhã seguinte, e partiram ! Quando chegaram na ponte da Batateira deram com uma tropa da polícia. Já ficaram desconfiados,  como vira-lata em noite de São João. Pensaram em correr, mas entenderam que seria pior:  a polícia tinha motos velozes e rápido os alcançaria. Que jeito ! Enfrentaram o perigo e esperaram chegar a vez. O guarda ao vê-los, meio pálidos e trêmulos, perguntou o que eles iam fazer no Crato, pois estava proibido entrar sem uma razão clara e justificável.
                                   --- O que é que vocês vêm fazer aqui no Crato ?
                                   Cilistrino, mais desasnado, com voz de camelô, tentou desenrolar:
                                   --- Seu guarda, nós já recebemos o dinheiro do governo e agora soubemos que vai ter mais e viemos correndo !
                                   O militar informou que teria outra parcela, sim, mais só dali a um mês. Tivessem paciência !
                                   Cilistrino  disse que soube que tinha mais uma ôiazinha, antes da segunda parcela.
                                   --- Que ôia, seu Cilistrino, eu não tô sabendo disso não!
                                   --- Oxe! Seu guarda ! Não se faça de abestado, não ! Nós  somos matuto, mas num somos lesados, viu ! Agora saiu o LUQUITAL, o senhor num tá sabendo, não ?
                                   Rindo, o soldado tentou explicar que o nome era uma ingrisia: Loquedau.  Aquilo era uma ordem do governo para todo mundo ficar preso, sem transitar pelas ruas, para evitar que o vírus se espalhasse. Não houve tempo dos compadres ouvirem direito. Presos ? Saíram numa desabalada carreira, saltaram a ponte e ganharam o areal do Rio Batateiras. O soldado ainda ouviu o comentário de Catingueira, antes de dobrarem a primeira curva do rio.
                                   --- Corre, compadre, corre ! Eles querem é prender nós ! Bem logo vi que iam jogar a culpa dessa doença em cima dos lascados que receberam os seiscentos ! Os seiscentos  mile cão! Eu num disse que tinham armado era um fojo pra nós ! ?

Crato, 15/05/20