quinta-feira, 21 de maio de 2020

O Índio Manso





“Eu não tenho paredes,
Só tenho horizontes...”
Mário Quintana
                                           

                                      Existem arquitetos especiais nesta vida que se especializam em construir estradas e não em cavar abismos; que  edificam pontes ao invés de cercas e que,  diante das montanhas,  aparentemente intransponíveis, perfuram túneis.  Há , entre eles, ainda, alguns mais notáveis: aqueles que erigem suas obras, silentemente, longe dos holofotes , utilizando o mais sofisticado de todos os instrumentos: a simplicidade. Neste 21 de maio,  celebramos o centenário de um desses artífices da felicidade, do bem-estar e do júbilo. Um borrifador de bem-querença, um aspersor de luz e cordialidade. José Nilo Alves de Souza, um nome que soa como uma sinfonia de Mozart para todos da sua geração, nasceu em Crato, na rua Nélson Alencar, filho do marceneiro Jorge Lucas e de D. Isabel. Neste mesmo benfazejo  ninho,  brotariam outras figuras queridas e notáveis do Cariri, como Dr. José Newton , Profa. Maria Nilza, o funcionário federal Francisco de Assis, o comerciante Oduvaldo , o jornalista Oswaldo Alves e o professor Dailton. 
                                   Zé Nilo fez os primeiros estudos no Colégio Santa Inês, na praça da Sé, enquanto ajudava ao pai nos trabalhos de carpintaria. Dele herdou um bom um humor fino e uma irreverência doce e contida.  Depois, no Ginásio do Crato, concluiu o curso ginasial, embarcando para Fortaleza nos anos 30, com o colega Aníbal Viana de Figueiredo, outra figura icônica da odontologia cearense. No antigo Liceu do Ceará, preparou-se para o vestibular, ingressando na Faculdade de Farmácia e Odontologia , onde colou grau em 1944. Paralelamente,  Zé Nilo alistou-se no Exército Brasileiro, chegando a 2º Tenente.
                                    Em 1945,  estaria de volta à sua cidade natal onde passou a clinicar , na mesma rua que viu primeiro nesse mundo. Zé Nilo, então, ecleticamente, envolveu-se em muitas outras atividades. Foi Diretor do Tiro de Guerra- 205 em Crato ( quase impossível imaginar uma figura tão pacífica na caserna).  Fez-se professor de Geometria Analítica no Colégio Diocesano  e , por mais de um quartel de século, orientou e formou muitas gerações de jovens. Lembrado por muitos alunos como um mestre metódico, sério, educado e fino. Trabalhou ainda no pioneiro Hospital São Francisco de Crato, voluntariamente, atendendo às segundas , os matutos que vinham às compras na nossa feira semanal. Mesmo trabalho odontológico voluntário desempenhou, por muitos anos, junto ao Seminário São José .  No final dos anos 50, Zé Nilo fez parte um movimento em prol da criação de uma Faculdade de Odontologia do Crato, que infelizmente, nunca se concretizou.  Nos anos 70, inauguraria , com os Drs. Henrique Costa e Fátima Lemos, a Clínica Cirandinha, nesta cidade, ainda em plena atividade nos dias de hoje.
                                   Na vida pessoal, Zé Nilo casou com D. Maria Yedda, em 1955, nascendo do enlace quatro filhos, todos ungidos dos benfazejos eflúvios emanados dos seus pais.
                                   Em 2 de maio de 1992, próximo ao aniversário de 72 anos, o “Índio Manso” ( como ele se auto-apelidava)  quebrou a rotina diária da sua oca e da sua taba :  cuidar dos passarinhos, ir ao mercado, ouvir a BBC de Londres, ler e atender no consultório da esquina, como o vinha fazendo nos quase últimos quarenta anos.  A Nélson Alencar esmaeceu naquele dia, a cidade tomou ares de sexta-feira santa. Ficou uma saudade transbordante:  da sua finura de trato, da sua educação congênita, do bom humor irrefreável, da sua boêmia  apenas verbal, das  suas bonomia e singeleza, do desprendimento ( Dr. Zé Nilo era quase uma entidade filantrópica) e do profissional ético, capaz, afável, tido por seus pares, em toda sua trajetória, como o maior odontólogo caririense da sua geração.
                                   Cem anos depois, permanecem na memória, como seu maior legado, aquela maneira simples, lhana e desafetada de encarar a vida, a capacidade quase única de boiar na correnteza e deixar-se levar, placidamente, pelo fluxo das águas da existência. Um dia -- há muitas curvas sinuosas, no trajeto do rio-- ao chegar à foz, percebeu que se juntava, homegeamente, a todos elementos da natureza: Zé Nilo era um homem sem  paredes, só  tinha horizontes...

Crato, 19/05/20 

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