Geremildo vivia mais tranquilo que sanguessuga em perna
de tetraplégico. Solteirão, metido num pequeno comércio de Secos &
Molhados, a renda não o elevava à importante patente de empreendedor,
mas dava para o gasto. Controlado, rapa de sola, Geremildo nunca esticou
o passo que não coubesse no compasso da perna. Era mais conhecido em Matozinho
por um apelido que engolia sem fazer careta: “Imbuá”. Sua única falha, segundo o experiente Ranulfo
Sitônio, um mascate aposentado de Matozinho, foi ( coisa de galego de primeira
viagem) não compreender que as
desgraças, na vida, nunca se negociam no varejo: adquirem-se, sempre, no
atacado. Pois seu Mar da Tranquilidade, de repente, quebrou as ondas no Cabo da
Tormenta.
Naquele
tempo, em Matozinho, os burros, jegues e cavalos começavam a ser substituídos pelas
motocicletas. Vaqueiro tangia boi de moto; matuto carregava bodes e porcos
amarrados nas motocicletas e conduzia esposa e filhos espremidos, botando a
gata pra miar, entre o tanque e a garupa. Atrelava-se ainda a moto em pequenas
carroças para a venda de quinquilharias , de pão, de verduras. Ela
passou a ser a condução moderna na vila, trazendo um certo ar de chiqueza e de
importância a seus condutores. Comprava-se facilitado na capital, comia pouca
gasolina, andava por tudo quanto é cuvioco, subia até em pau de sebo nas
quermesses do Padre Arcelino. O Motor, como os matozenses chamavam, virou o
sonho de consumo de tudo quanto era vivente daquelas brenhas. Com Geremildo não
foi diferente. Quebrou o porquinho que guardava debaixo da cama, juntou os
cobres e encomendou o bólido.
Imbuá lembra com saudade o dia em que recebeu a moto
reluzente, trazida amarrada na sopa de Duzentos. Nem ouviu os conselhos de
outros praticantes do motociclismo local. Diziam que tivesse cuidado, que
tomasse algumas lições antes de pilotar o mói de ferro. Afinal aquele bicho só
tinha duas rodas e tinha sido projetado para uma finalidade específica: Cair !
---
O quê ? Quem já amansou burro brabo e já campeou boi zebu,
dentro de carrasco , tem lá medo de montar num coisa besta dessa ?
Aí
, Sitônio soltou a última frase da sua
morada no Mar da Tranquilidade:
--- Deixe
comigo ! Não quero nem saber quem cortou a perna do Saci, meus amigos ! Eu já
vendi foi a muleta !
No dia
seguinte, nosso filhote de piloto empurrou a moto até o topo de uma ladeira,
pediu para um amigo ligar a estrovenga com umas pedaladas. Montou e desceu
encosta abaixo . Pende para lá , pende para cá, parecia um perneta que tivesse
tomado dois litros de fubuia. Havim, sim, lhe ensinado onde era o acelerador,
mas não encontrou o freio. Lascou-se no meio de um jatobá frondoso, da margem
da estrada e, quando os amigos correram, o encontraram meio desacordado e com a
perna quebrada. Levaram-no para a botica de Janjão que prescreveu uns mastruz
triturados para colocar no local e um chá de jalapa. Geremildo, coitado,
terminou tendo que ser levado para a capital e quando voltou tinha deixado a
perna direita por lá.
--- Quebraram
minha pernas ! Mas foi melhor do que eu tivesse esticado elas ! --Disse um Sitônio meio choroso, mas aparentemente consolado.
A partir daí,
a via crucis do nosso negociante
estendeu-se no atacadão dos dias. Morando sozinho, com os gastos do tratamento
e da viagem, sem poder trabalhar por meses, as finanças começaram a deteriorar.
Conseguiu ,com o prefeito Sinderval Bandeira, uma perna mecânica e a adaptação pareceu-lhe
mais difícil do que pilotar a moto. Com o tempo, conseguiu andar com certa
desenvoltura, até que um dia, em casa, a perna quebrou e ele caiu. Passou mais de
meio dia rastejando até conseguir pedir ajuda. Soube depois que a prótese doada
era de péssima qualidade, como quase tudo que vem do governo. Jurou de pé junto
que nunca mais pediria tênis a Sereia.
Pois foi no
meio desse sufoco, enquanto enchia, novamente, pingo a pingo, o porquinho para
juntar dinheiro e comprar uma perna nova que Geremildo conheceu aquela que
parecia ser uma enviada celeste para
adocicar um pouco o fel dos seus últimos meses. Cacilda lhe apareceu. Era de Matozinho,
tinha passado anos no Rio de Janeiro e voltara com aquela inflexão sensual na
voz que lhe deixou com a única perna restante, bamba. Chegou como uma
missionária, trabalhara como promotora de vendas em Niterói e jurou-lhe, de pés
juntos, que podia ajudá-lo. Reboculosa, com pneu de suporte com mais de
quarenta libas, alta e com curvas como a ladeira do Quincuncá, a
perna de Geremildo enroscou-se como visgo nas de Cacilda que se abriram em
compasso como para-brisas de fusca . Um
Geremildo carente, mais seco que língua de papagaio nos Inhamuns, apaixonou-se
rápido pela carioca. Rolou um clima e, em menos de uma semana, a namorada já
estava aboletada na casa dele de mala e cuia.
A
carioca falante mostrou, então, a que
veio: iniciou uma campanha caritativa na cidade para a compra da perna mecânica
de qualidade para o noivo . A igreja, políticos, amigos participaram de rifas,
leilões e bingos sequenciaram-se na
campanha “ Geremildo de Pernas pro Ar !”. A apoteose aconteceu com um bazar, no pátio da Igreja,
quando uma Cacilda lacrimejante avisou, ao final, agradecida e emocionada:
haviam arrecadado os seis mil reais que pretendiam e que, finalmente, seu amor iria
poder andar com a mesma galhardia de outrora. Bombas rasga-latas pipocaram,
fogos vararam o céu, em meio às palmas
dos matozenses.
À noite, em
casa, Geremildo e Cacilda comemoraram o feito com umas talagadas de pinga e a continuação da lua de mel. Pela
manhã, ele acordou com uma ressaca daquelas: parecia que tinha engolido um gato
com as unhas abertas, gogó abaixo.
Chamou pela noiva: lugar mais limpo! Anoitecera e não amanhecera, nem ela nem o
dinheiro arrecadado! Pegara a sopa na madrugadinha. Avisara ao motorista que
estava indo à capital comprar a prótese do noivo. Mas mentira tem perna curta !
Geremildo descobriu, rápido, que haviam
lhe passado a perna. Tinham lhe dado uma rasteira !
Com os dias,
conseguiu superar o pé na bunda. Mas com tantas pernas perdidas , pernas
enroscadas, pernas compradas e doadas, nunca mais conseguiu se livrar do
apelido de “Imbuá”.
Crato, 29/05/20
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