Houve um
tempo em que a palavra empenhada carregava consigo força de lei. Não existiam
cartórios, tabeliões, reconhecimento de firmas, avalistas. Valia a palavra simples
pronunciada, que se firmava no ar como se nas tábuas da lei de Moisés. A honra
de qualquer vivente punha-se à prova quando o compromisso oral, aparentemente
frágil e volátil, era pactuado. Os
homens diagnosticavam-se como probos e honestos, utilizando-se a escala de honradez da palavra
assentada. Claro que vicissitudes e tormentas, no curso da vida, poderiam fazer
com que fosse impossível cumprir os contratos verbais. Talvez, nestes
tenebrosos momentos, ficasse ainda mais visível a retidão e a dignidade humanas.
Devedores, tantas e tantas vezes, preferiam a morte à desonra. Não raro, por
outro lado, assistiam-se a cenas de generosidade por parte daqueles mutuantes
que alargavam prazos do pagamento, dispensavam débitos ou reemprestavam dinheiro para que devedores se soerguessem e, depois,
ressarcissem suas dívidas. Os bancos e
os advogados ainda não tinham estabelecido a avidez dos juros e a frieza siberiana
das relações mercantis.
Mas um dia, chegaram os bancos, os agiotas , os notários,
os cheques e os protestos. Pessoas
precisavam de um empréstimo e já não mais procuravam o compadre, mas o gerente.
As casas comerciais passaram a desconfiar dos clientes. A venda a crédito
dispensou a cadernetinha do bodegueiro, substituindo-a pelo papagaio. A palavra
empenhada perdeu sua notoriedade e começaram a pulular os malacas, os velhacos
e os malandros. A retidão perdeu a sua importância e a sabedoria, a trapaça, a
astúcia encheram-se de magnetismo e de glamour. Os comerciantes, rápido, desenvolveram um
serviço de inteligência próprio, uma espécie de SPC e compartilhavam
experiências e histórias de velhaquice entre si. Começaram, também, a exigir
referências nas compras a crédito e nos empréstimos bancários.
Essa é uma
história de um comerciante do Crato,
oriundo, como tantos e tantos outros, das terras de Jardim. Homem sério,
positivo, ainda da geração da palavra sagrada. Um dia chegou na sua loja, um fiscal do Banco
do Brasil, que tinha como função tomar informações pessoais junto a pessoas
ilibadas e referenciadas pelos próprios clientes.
--- Seu
Chico, por favor, sou fiscal do Banco do Brasil e queria lhe pedir algumas
informações sobre um cliente. O senhor conhece o Sr. Bernadino Fogaça ?
O experiente
comerciante lembrou imediatamente do Foguinho, como era chamado. Velhaco de
carteirinha, era daqueles de quem os comerciantes do Crato tinham medo de
vender até a vista.
---
Foguinho? Conheço demais! É gente da
casa!
--- Seu Chico
ele é um bom pagador? Cumpre com suas
obrigações ?
--- Olhe, meu
amigo ! Eu só lhe digo uma coisa: na época de inverno bom, ele não paga a gente
vivo não, agora em ano de seca, eu não sei informar ! Pode até ser !
Seu Chico
tinha um fornecedor de sola, de longa data. Um tal de Filismino Varjota. Morava
em Parnamirim, no Pernambuco. O certo é que Filismino, em uma de suas viagens, fez uma proposta de empréstimo no Banco do
Brasil e o colocou como informante. O fiscal do banco, novamente, foi ter à sua
porta.
--- Seu
Chico, tudo bem? Sou do Banco do Brasil e queria lhe pedir informações sobre um
cliente que nos fez uma proposta de empréstimo. Filismino Varjota, o senhor
conhece?
--- Conheço
demais. Gostava muito dele! Rapaz bom ! Pena que tenha morrido ainda novo !
--- Morrido,
seu Chico ? Quando ? Pois semana passada ele esteve lá no Banco e parecia tão
saudável !
--- Pois é !
Eu também me admirei. Naquele mesmo dia, ele passou aqui e me disse que estava aperreado
e me pediu para adiantar os duzentos contos de réis que ia receber do
empréstimo do banco. Ele me disse que viria pagar terça feira passada como sem
falta e, lembro como hoje, disse assim: Eu só não venho pagar terça, escreva
aí: se eu estiver morto ! Eu emprestei! Hoje
já é sexta e ele nada ! Morreu, coitado ! Só pode ! Vou mandar celebrar uma
missa na sé na intenção da alma dele! Coitado !
Crato,
29/11/19
Um comentário:
Ramo sim!!! 👏👏👏
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