Neste finalzinho de ano, minha filha
mais nova, Flora, colou grau em Medicina. Embora o mesmo feito tivesse acontecido com
dois outros, anteriormente, Ricardo e Helena, que também seguiram a mesma
vocação do pai, e com a minha penúltima,
Denise, que buscou os rumos do Direito,
a alegria é sempre renovada. Lembrei, imediatamente, quarenta e dois anos
atrás, quando, no mesmo dezembro, um menino, filho de professores, cheio de ilusões , olhos brilhantes, degustava o gostinho de objetivo alcançado, parecido
com aquele sabor de doce do leite de Isabel Virgínia. As folhinhas passaram céleres
no calendário da vida. Como dizia o nosso Pe. Antonio Tomaz, hoje: “Os desenganos vão conosco à frente e
as esperanças vão ficando atrás”...
Como
num estroboscópio, sucederam-me imagens dos primeiros e duros tempos de luta de um cirurgião geral no
interior de um pobre estado do paupérrimo Nordeste. A Residência estafante. O difícil começo de vida, os sucessos e
insucessos. Os plantões davam-nos a certeza de que íamos dissipando o valioso
tecido da vida: estávamos sempre de guarda enquanto o mundo palpitava do lado
de lá dos nossos portões. Postos na terrível fronteira entre a saúde e a
doença, entre a moléstia e o bem-estar, a vida e a morte, vezes confortava-nos o
restabelecimento dos pacientes, outras exasperava-nos a nossa impotência frente
à inexorabilidade da velha da foiçona. Antes de reclamar do afastamento
inevitável dos filhos e da família,
compreendíamos que, abraçando a Medicina, adotávamos, imediatamente, uma
família bem mais ampla e desamparada. Se os proventos não pareciam proporcionais
aos esforços, rápido o médico entendia que há outras formas de pagamento bem
mais gratificantes e duradouras que o simples tilintar das moedas.
Pensei
em tudo isso quando na solenidade observei a mesma sensação de alegria e
realização no rosto de Florinha. E
percebi que a corrida estava apenas começando, os ônus e bônus da profissão,
como num videogame estão espalhados nas várias etapas futuras deste Mortal
Combat. Tantos anos depois, certamente, a minha experiência de vida tem pouco a ensinar às novas gerações. Mudou o
mundo, mudaram os costumes. A nova leva de médicos está profundamente ligada à
Tecnologia. Vivemos em tempos de Cirurgia Robótica, de Telemedicina, dos
incontestes avanços da Informática e da globalização. Novos medicamentos, novas
técnicas, novos instrumentais de terapêutica e diagnóstico subverteram, quase
totalmente, o esculápio hipocrático de pé de leito. A relação médico-paciente ficou mais distante, seguindo a distância
regulamentar que se tem inserido entre todas as pessoas. Como a relação passou a ser mais
comercial, o fórum para resolver os conflitos não mais é o diálogo, mas os
tribunais , sob a égide do Código de Defesa do Consumidor. O coleguismo nas
escolas foi substituído pela competição. Universidades caríssimas formam turmas
orientadas muito mais ao mercado do que às almas. A visão social da Medicina ,
tão preponderante entre nossos pais e avós, foi descartada em alguma lixeira
hospitalar. O médico hoje trata as doenças visíveis e observáveis pela imaginologia,
já não os interessa as suas causas. Falta-lhes a percepção de que a maior parte
das mazelas que acomete o grosso da população de esfomeados do país não é
curável pelos medicamentos, mas por ações políticas. Sentem-se e sentam-se no
topo da pirâmide e não lhes interessa mudar essa realidade confortável. Afinal,
se ali chegaram, acreditam ter sido por mérito pessoal. Como se nessa corrida
até o topo, todos tivessem largado nas mesmas condições e alguns já não
tivessem, à sua disposição, escadas e
elevadores especiais. Tendo investido muitas vezes fortunas na formação, alguns
empenhados no mercado financeiro por trinta anos, o Juramento Hipocrático da solenidade é mera retórica e formalidade.
Se o arsenal
tecnológico evoluiu da água para o vinho, o mesmo não aconteceu com a dor, o
sofrimento, a miséria, a angústia, a depressão. Todos eles continuam bem
presentes, vívidos e multiplicados. Se novos remédios surgiram, doenças novas nasceram ou renasceram : a
AIDS, a Dengue, a Zika, a Chikugunya, a Gripe, o Ebola, a Desnutrição, o Suicídio, o Autismo, a Pobreza-- esse imã potentíssimo
de doenças e achaques. As enfermidades criaram marra e atacam os guerreiros da saúde: hoje os médicos
sofrem de quadro depressivos, de suicídios, de doenças cardiológicas bem mais
que a população que eles tratam.
Assim, tenho
pouco a oferecer aos meus colegas recém formados. Até porque continuo crendo
que o encontro de uma alma com outra
alma, de um coração com outro coração tem um poder de cura muitas vezes acima
dos medicamentos mais modernos. A sensibilidade social para o médico, no meu
entender, faz parte intrínseca da nossa Arte. Uma atividade profundamente
humanística não pode prescindir da ética, do desprendimento, da bem querença,
do fazer o bem sem interessar a quem. Sem isso, qualquer profissional, por mais
habilitado que seja, não passa de um simples técnico, um hábil consertador de
fogões ou tv´s, faz artesanato, mas não faz Arte. Como Pedro Nava, entendo que
ler Machado de Assis ,Balzac, Manoel Bandeira, na nossa atividade, é tão importante quanto estudar nos livros de Cirurgia e de Medicina Interna.
Queria, de
coração, passar estas crenças para a geração de Florinha. Mas sei ,
perfeitamente, que rirão de mim e terão a clara certeza de que estou velho
demais, a caminho da demência que já se esconde pelas esquinas e vielas à
frente. Essas minhas verdades servirão pouco para vocês. Esqueçam tudo ! Mas
lembrem-se : sejam felizes ! Torço para
que vocês também, daqui a alguns,
assistindo à formatura dos filhos, ainda deleitem-se como se lambessem o doce
de leite da nossa Isabel Virgínia.
Crato, 12/12/19
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