Toda
cidadezinha interiorana que se preze tem lá os seus filósofos de pé de calçada.
Forjados nas lidas do tempo, temperados na estrada da vida, eles vão, dia após
dia, criando uma filosofia própria e
particular, capaz de trazer luz em momentos de maior perplexidade. Em
Matozinho, isso não era diferente e o maior deles, o mais consultado e
reverenciado, tratava-se de Tutu Espinhosa. O homem viajara por Seca&Meca,
trabalhara na marinha mercante, singrara por muitos mares e só quando aposentou
a âncora e o anzol resolveu voltar para Matozinho. Barbas brancas, gestos
medidos milimetricamente, Tutu tinha uma incrível paciência na arte de escutar.
Vezes acreditava-se que o homem sofria das oiças ou era meio lesado , como se
tivesse fumado maconha quiabada. Matutava ao ouvir os problemas que lhe
chegavam ao oráculo e só depois de muitos minutos saltava com a resposta que,
em geral, tinha precisão cirúrgica e saía de uma comparação objetiva e
pragmática, bem difícil de ser contestada.
Espinhosa
morava sozinho em uma casa simples na saída para Bertioga. Tivera muitas
mulheres, segundo consta ( uma em cada porto), mas , com o peso dos anos,
terminou por decidir carregar o fardo só. Dizia sempre: Já que algumas vieram
antes e, depois de comerem a coalhada, foram embora, não é justo arranjar
alguém agora pra beber só o soro !
O
certo é que Tutu funcionava como um conselheiro em Matozinho. Suas soluções aos
problemas mais complicados passaram a ser registrados nos arquivos linguísticos
da vila, passando de geração em geração. Inclusive terminaram por criar uma
certa jurisprudência, uma espécie de Suna, sacados em outras situações
similares.
O
velho Pedro Cangati, possuidor de uma récua de filhos, escolheu o mais
inteligente para ir estudar na capital. Resolveu dar diploma ao menino e
justificava a iniciativa, sem nenhum pejo: Vou formar esse menino advogado que
é pra ele sustentar eu e minha mulher quando a gente estiver velhinho e sem
mais poder trabalhar. Tutu elogiou a iniciativa mas os
dissuadiu da expectativa.
--- Seu Pedro, formar filho é uma coisa
especial. Mas cuidem vocês mesmos de arranjar escapatória pra velhice, viu ? Tirem
o cavalinho da chuva! Tu já viu, alguma vez nessa vida, passarinho novo dando
comida em bico de passarinho velho ?
Tutu
foi responsável pela melhor definição dada a um político de Matozinho. Cocisfran Medanha lançara-se candidato a
prefeito uns três anos antes do pleito. Zoadava pelos cantos das ruas, prometia
mundos e fundos. Não perdia qualquer evento : renovação, aniversário,
quermesse, entronação de santo, velório. Fez-se especialista em pagar pequenas
promoções: rodadas em mesa de bar, bolas de futebol, velas para procissões. Carregava
em um dos bolsos notas de dois reais e no outro de cinco ( cota máxima de
patrocínio que estabelecera).Nunca dava um não. Qualquer pendência maior, fazia quebra de asa,
protelava para datas mais longínquas. Os eleitores perceberam, rápido, suas maquinações: muita
fumaça e pouco fogo. Perguntaram ao nosso filósofo um diagnóstico de Cocisfran
e a conclusão não poderia ser mais concisa e exata:
---
Olhe! Cocisfran é uma soca-soca toda especial. Com ele não se mata passarinho. Ele
só tem a espoleta! Não tem pólvora nem chumbo !
Quinca Jurumenha , já entrado na
oitava década, enviuvou. Nos primeiros meses, o velho murchou, retraiu-se,
parecia que ia seguir , em poucos dias, os passos de D. Minervina. Depois de
uns seis meses, no entanto, tirou o fumo da lapela, criou marra , cobriu-se de
perfume e talco Rossi e partiu para a luta e para caça. Logo, logo, encontrou
uma pretendente de uns dezesseis anos que se botou pra cima de Quinca como o
boi botou em Mestre Alfredo. O capim novo caiu no cocho de Jurumenha como mel
em beiço de diabético e o velho se assanhou. Criou sustança nas canelas,
apaixonou-se e marcou casamento. Os familiares tentaram, a todo custo, mostrar
para ele os perigos inequívocos da empreitada. “Ela quer é tua pensão, Quinca! Acorda
!Salta desse barco, seu maluco!” O noivo, no entanto, pensou com sua braguilha:
E pra que diabos mesmo eu quero essa
pensão ? Pra deixar pra quem , pra
gastar com coroa, com vela de sete dias e missa de corpo presente ? Perdido por
um, perdido por mil ! Pelo sim, pelo
não, Quinca resolveu consultar o experiente Tutu. Procurou-o e informou a
situação. Casamento marcado com menina de dezesseis anos, ele com oitenta e lá
vai pedrada. Que que tu acha, Tutu ? Espinhosa ruminou um pouco, com os olhos
fitos no telhado e, depois de alguns minutos , matou a charada.
--- Quinca,
tu entrou agora mesmo no açougue de Ramon. O homem matou um boi erado. Logo na
frente do balcão ele botou a cabeça do bicho para vender. Mais atrás a carne
traseira tá exposta nos ganchos. Logo mais atrás, no fundo, a parte dianteira
e, finalmente, lá no fundo da quitanda, dependurada num cantinho, bem longe, a
rabada. Pois tu tá mais ou menos assim, Quinca, nesse momento.
--- Assim ,
como? -- Quis saber o projeto de noivo.
--- Desse jeitinho,
Quinca. De frente de tu, bem pertinho, o chifre facim danado de pegar. Lá
longe, bem longe, difícil de botar a mão como o diale, a rabada. Tu tá muito
mais perto das pontas do que do rabo. Desse jeitinho, homem de deus !
Semana
passada, na TV da praça de Matozinho, estava passando um programa eleitoral. No
meio apareceu Ciro Gomes. Falou bonito danado, com uma facilidade de camelô de
feira. No meio, no entanto, do seu conversado, começou a lascar o pau em todo
mundo: no presidente, no ex-presidente, nos prefeitos, nos senadores, nos
deputados, no padre, no bispo, nos vereadores, no papa, no pastor, no síndico do prédio, na
polícia, no exército, num passarinho que passou tirando fino na careca dele.
Todos na praça comentavam a desenvoltura do político: desarnado, palavra fácil,
discurso aprumado, entonação de locutor de FM. Alguém, da roda, então, resolveu
perguntar a Tutu o que ele achava do Ciro Gomes. Nosso filósofo sintetizou :
--- Cabra
inteligente da peste! Devia ser mascate. O difícil para política é que ele tem
labareda demais e extintor de menos. O
problema dele é um só: ele sabe acender a broca
nos quatro lados da roça, mas esquece, sempre, de antes, fazer os
aceiros.
Crato, 21/11/2019
Nenhum comentário:
Postar um comentário