“A casa onde eu nasci, embora já
não seja
minha, permanece intacta em mim como a
escultura de uma caravela em uma garrafa:
uma casa dentro da memória.
Nunca mais foi como aquele o cheiro dos
lençóis limpos nem o aroma das comidas,
a música das vozes amadas e o crepitar
das lareiras, nunca mais a mesma sensação
de acolhimento, nunca mais pertencer a
nada com tamanha certeza.”
minha, permanece intacta em mim como a
escultura de uma caravela em uma garrafa:
uma casa dentro da memória.
Nunca mais foi como aquele o cheiro dos
lençóis limpos nem o aroma das comidas,
a música das vozes amadas e o crepitar
das lareiras, nunca mais a mesma sensação
de acolhimento, nunca mais pertencer a
nada com tamanha certeza.”
Impregnado
do doce cheiro dos engenhos; imantado do verde dos canaviais; inebriado da
paisagem que se lhe abria sensual à sua frente, em 180º ; atropelado pela
sinuosidade da chapada que se desenhava à distância; contorcendo-se como a
imburana de cambão que se imolaria, logo mais, para a talha, num novo gênesis; a vida, desde a mais tenra
infância, sempre se lhe apresentou como uma aquarela. E o menino da Bebida Nova
permaneceu incólume, impassível à passagem dos anos, mesmo quando o invólucro
foi sofrendo a oxidação dos dias e das horas. Como um fóssil que se tivesse mantido vívido e
mutante, imune às amarras da mineralidade.
O menino Sérvulo Esmeraldo guardou,
carinhosamente, por toda sua existência,
aquele quadro que se lhe debuxou aos olhos, quando, engatinhando, foi
desvendando os mistérios daquele universo que se espichava para além do casarão
da Bebida Nova. Os anos passaram-se
céleres, o artista bebeu das águas do Mucuripe, degustou as esquinas as
Sampa, subiu as escadarias do Sacré-
Coeur. Outros horizontes se desdobraram à sua frente: lúdicas paisagens
delineadas pelo concreto, esmerilhadas por poetas da forma. Num frenesi , o
artista saltitou da gravura para a escultura, experimentando novas formas
sensitivas de aflorar a beleza, criando um mundo próprio , uma nova forma de enfocar
a vida e o mundo, com um olhar oblíquo, transversal.
O pássaro que , como uma ave de arribação, volitou pela Europa e pelo Sudeste,
um dia fez a viagem de volta. Faltava-lhe luz.
E aos poucos, viu-se refazendo o milagre criador do Fiat Lux. Pontilhou
Fortaleza com mais de quarenta grandes esculturas públicas, impactando
logradouros, praças e ruas. Obras que ali se postam vivas e desafiadoras .
Vezes embevecendo, vezes revoltando , outras incomodando... nunca inertes ou
engolidas pelas paisagens à sua volta.
Um dia o menino encantou-se. Talvez,
brincando de esconde-esconde, tenha
subido uma frondosa timbaúba, ou se enfurnado na mata da Coruja. Conheceu
outras línguas, outros povos, outras culturas, mas nunca, por um só momento,
conseguiu se afastar do Crato. E é a sua querida cidade, script, palco e cenário de toda sua
vida, que agora prepara a festinha de aniversário do menino. Vamos apinhar
nossas ruas com seus brinquedos; caiar o
velho casarão para as festividades; dá-lhe o presente de um Museu Vivo, a céu
aberto, ali : princípio, meio e fim de uma história lúdica e gloriosa.
O menino continua a ensinar que na vida,
como na arte, tudo se limita ao leve equilíbrio
entre a luz, a sombra e o movimento...
4 comentários:
Só mesmo o Zé Flávio pra criar um texto exuberante como este.
Fabuloso, sensacional, inigualável e mais uma ruma de adjetivos.
Nota 1000.
Mais um texto de inigualável beleza literária. Parabéns, Dr José Flávio. Texto a altura do artista!
Obrigado a Laice e Nilton pelos comentários. Sérvulo merece bem mais !
Que lindeza de palavras!
Postar um comentário