Há quinhentos anos, terminava seu
percurso luminoso na Terra, o gênio mais eclético da história da humanidade: Leonardo da Vinci. Pintor, matemático,
cientista, engenheiro, inventor, anatomista, escultor, arquiteto, botânico,
precursor da aviação e da balística, além de poeta e músico, este polímata fechou os olhos, prematuramente, aos 57 anos,
numa pequena cidade francesa : Amboise, no Vale do Loire, no Castelo Clos Lucé , naquele sombrio dois de maio de
1519. Filho ilegítimo de um notário com uma camponesa, pobre, desamparado, Leonardo sequer tinha um sobrenome: o Da Vinci
que o acompanhou por este meio milênio referia-se à pequena cidade onde nasceu,
próximo à Florença. Educado no ateliê de um famoso pintor da época, Verrochio,
influenciado por toda uma fabulosa geração de artistas do Renascimento Italiano
como Donatello, Ucello, Michelângelo, Piero Della Francesca, Cellini, Perugino
e muitos , muitos outros, Leonardo terminou por ser mais conhecido por suas
obras em pintura. Por incrível que possa parecer, apenas quinze sobreviveram até os dias de hoje. A
Mona Lisa e a Última Ceia fazem parte do acervo mais famoso de obras pictóricas
da humanidade. São elas das mais
reproduzidas, mais copiadas e imitadas, só comparáveis à Criação de Adão de
Michelângelo. O desenho do homem Vitruviano é um ícone da história imaginológica ocidental e está
espalhada como arte pop em camisetas e impressa no Euro, como símbolo
europeu. Não bastasse isso, nosso gênio
rabiscou o protótipo do tanque de guerra, do helicóptero, da calculadora, da
bobina automática, da utilização da energia solar. Fez avanços consideráveis
ainda no campo da anatomia, da engenharia civil, da óptica, da hidrodinâmica.
O mais
incrível em tudo isso é que a vida de Leonardo, salvo sua genialidade, o
impulsionava, naturalmente para a tragédia e para o fracasso. Nascido pobre e
em leito ilegítimo, teve uma infância conturbada por novos casamentos da sua mãe
e do seu pai. Além de tudo, Da vinci carregava consigo conflitos na sua
sexualidade, com histórias que correram
soltas pelos séculos , ligadas, principalmente, a dois de seus pupilos : Salai e Francesco
Melzi. Com toda essa carga de contratempos, o moto contínuo da vida tinha de
tudo para facilmente triturar o seu
gênio. Seu nome poderia ter sido esquecido nas esquinas dos anos, como muitos
outros contemporâneos seus, e sua
história poderia ter desbotado como uma aquarela sob a ação inexorável do tempo
. Que fatores contribuíram para que Leonardo visse seu prestígio crescer
através das centúrias e chegar vívido e
reluzente , cinco séculos depois da sua partida ? Esta pergunta pode
parecer tão enigmática quanto o sorriso da Mona Lisa. Importante, no entanto,
entender que Da Vinci contou com a ajuda
imprescindível de muitos mecenas poderosos, principalmente da família Médici.
Entre tantos contam-se: Lourenço de Médici, Ludovico Sforza, Francisco I da
França. Além de tudo, vivia a Europa o período fulgurante do Renascimento,
quando a arte quebrava os grilhões milenares do sacro, baixava os olhos do céu
para o feijão com arroz terrestre. Leonardo teve os holofotes focalizados
diretamente nas suas telas, com um enorme impulso dado pelo Estado Feudal
europeu.
Da Vinci é
uma prova cada dia mais viva de que a grande Arte é a pepita de ouro final que
restará na bateia do tempo. Os poderosos que o patrocinaram ficaram nos livros
de história, unicamente, por conta deste ato. Quando se faz o inventário do Século XVI, os
únicos bens que sobreviveram ao bolor das horas foram os bens culturais. Reis,
Papas, Duques, nobres voltaram ao pó, mas o sorriso da Mona Lisa continua a nos
encantar, embora já se mantenha armado há mais de quinhentos anos.
Da Vinci
carregava todos aqueles atributos que no Brasil de hoje são condenados e
merecedores de execução sumária: pobreza, bastardia, homossexualidade, vida
tida como devassa, preguiçosa e sustentada por patrocinadores ( uma espécie de
Lei Rouanet do Século XVI). Pois ele persiste
impávido , ensinando por todos
esses séculos que governos passam, costumes e preconceitos desaparecem, presidentes fenecem, políticos evaporam-se. É unicamente a Arte que carrega consigo as
chaves da eternidade. A mais eficaz arma para destruir a memória de uma nação é
exterminando sua cultura. O grande problema é que muitas vezes é essa mesma a
plataforma de alguns governos: aí queimam-se museus e livros, fecham-se teatros
e cinemas e perseguem-se artistas. Passadas as eras , no entanto, é sempre o
gênio que sobrenada em meio aos escolhos , como um lírio que desabrocha na
margem do pântano.
Crato, 03
/05/19
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