sexta-feira, 10 de maio de 2019

O Sétimo Selo


Carlomeno era aquilo que em Matozinho se conhecia por incréu. Homem de pouca reza, desses que não fazem rastro em procissão , nem molham caneco de coroinha. Os matozenses se admiravam como é que uma criatura podia viver nesse mundo sem acreditar em uma força superior: um satanás daqueles não tinha medo de castigo, não ! Carlomeno  nem fazia muita apologia à sua descrença, quando lhe perguntavam se não acreditava em Deus do céu, simplesmente, respondia:
                        --- Amigos, acima do telhado, não se enganem não ! Só os gatos, os urubus e os aviões!
                        O agnóstico mais ferrenho de Matozinho, nem tinha lá suas razões para tantas dúvidas. Criara-se de pais  protestantes e conhecera a Bíblia bem antes da cartilha. D. Gauderina e Seu Orleânio foram fiéis fundadores da primeira igreja evangélica da vila : a do Sétimo Selo. A chegada daqueles “bodes”, como passaram a ser denominados os primeiros protestantes da vila, causou a maior estardalhaço na região. Eram discriminados como se se tratasse de uma chaga, uma blasfêmia, um esconjuro. O primeiro pastor da “Sétimo Selo” foi um missionário inglês Peter Blackberry . Gazo, comprido como um dia de fome, chegou quando nosso incréu ainda nem tinha nascido. Falava ainda um português engrolado como de um tátaro que tivesse tido um ramo. Como , ao fim de cada pregação, gostasse de reafirmar citações bíblicas com a exclamação inglesa : “For Sure !”, os matozenses , rápido, o apelidaram de “Pedro Foçura”. Gauderina & Orlênio, os pais de Carlomeno, foram os pioneiros do novo credo em Matozinho.  Inclusive, o batismo do filho, para o bem ou para o mal, ficou sob a responsabilidade de Blackberry, que o mergulhou nas turvas águas do Paranaporã, por volta dos oito anos de idade.

                                   Apesar desse alvissareiro ato batismal, Carlomeno, desde criança, pareceu avesso aos ritos cristãos. “Foçura” até que tentou trazê-lo para dentro dos evangelhos e dos salmos, mas morreu prematuramente,  quando o nosso Carlomeno tinha uns dez anos. Gauderina & Orlênio  sofreram como se tivessem perdido alguém da família. O casal demonstrou, de início, também,  um grande desgosto, vendo o filho escapar pelas beiradas dos dez mandamentos. Os novos pastores que sucederam “Pedro Fuçura” tentaram trazer nosso renitente incréu para as aleluias e as orações: tudo em vão. O garoto estudou, arranjou um emprego como barnabé na prefeitura,  e fez-se discípulo de outros deuses mais pagãos : Baco e Dionísio.
                                   Nestes dias, Carlomeno ainda residindo com os pais, solteiro e desimpedido, soube, no trabalho, que em Matozinho, tinham fundado um Terreiro de Candomblé: o Ilê Axé Tolá. Ficou curioso com a novidade e , sob insistência de um amigo, resolveu , curioso, fazer uma visita. Sem contar nada em casa, saiu na boquinha da noite para um sítio próximo ao sopé da Serra da Jurumenha, onde estava instalado o templo. Em lá chegando, viu-se em meio aos tambores e as roupas coloridas das irmãs de santo rodopiando , no ritmo dos batuques. Aproximou-se de “Pai  Araçá”, o pai de santo que , em transe, pronunciava palavras entrecortadas e quase ininteligíveis. De repente, este virou-se para Carlomeno, com olhos esbugalhados e disse que alguém do outro lado estava ali presente. Era uma pessoa muito querida dele e queria conversar. Carlomeno , com um sorriso incrédulo, perguntou:
                                   --- Quem vem lá, Pai Araçá ? Quem quer falar comigo ?
                                   Olhos transidos, voz roufenha, o sacerdote lhe disse:
                                   --- É seu pai, meu filho, ele está com saudade e quer conversar com você!
                                   Carlomeno, sorridente,  com aquela cara de quem tinha fechado o firo , quis desfazer a enganação:
                                   --- Que palhaçada é essa, Pai Araçá ? Meu pai ? Tu tá doido? Tu vai arranjar um emprego, já-já, nesse governo ! Meu pai tá em casa, vivinho da silva !
                                   Pai Araçá, não se deu por vencido:
                                   --- Aquele lá, Carlomeno, é o marido de tua mãe! Quem quer falar contigo é o teu pai. Num tem nada haver uma coisa com a outra!
                                   Num esgar, contraindo-se todo, uma voz do além  saiu  do peito de médium de Araçá:
                                   --- For Sure !

Crato, 10/05/2019
                       

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