Em Matozinho uma das figuras mais detestadas era, sem
nenhuma dúvida, o tal do cobrador de
impostos da prefeitura. No fundo, ninguém em sã consciência deleita-se em pagar
tributos, sempre se tem a clara sensação de que se está trabalhando de meia com
o governo: ele divide a renda e aos simples mortais cabe o trabalho duro e os
riscos inevitáveis da empreitada. Por outro lado, o matuto manja rápido a treta
que lhe é armada e sabe perfeitamente que a possibilidade de retorno do
investimento tributário que lhe arrancam é exatamente zero. As casas comerciais
montadas nas estreitas ruas da vila não tinham muito como se safar do achaque
mensal e da sangria contínua. Viravam-se como podiam na sonegação nossa de todo
dia, vezes subestimando as vendas, não emitindo notas fiscais, outras
subornando um ou outro tributarista mais escorregadio e sabichão.
A
grande Feira de Matozinho acontecia às quintas. Era um dia de festa, feriado
municipal. No campo, ninguém trabalhava, todo mundo vinha para a vila sob o
pretexto de comprar os mantimentos da semana. Junto, os homens invadiam os
bares e a famosa rua do “Caneco Amassado”, qu afinal ninguém é de ferro. O comércio abria normalmente, mas as ruas
faziam-se os grandes protagonistas do dia : apinhavam-se de ambulantes com suas barracas, e de camelôs de voz sinuosa
e tonitruante, divulgando as mais variadas pomadas e unguentos. Como num shopping, havia áreas específicas
para legumes, carnes, confecções, bebidas,
salão de beleza, utensílios domésticos, ferramentas de trabalho e até uma praça
de alimentação. Como era de se esperar,
neste dia especial, os fiscais da prefeitura vinham como enxame de oropa , em
busca de recolher os impostos, que ali ainda chamavam de Finta, deste comércio vário e eventual. Os ambulantes, afeitos ao achaque semanal,
defendiam-se como podiam, sabiam que era bem mais fácil sonegar as vendas
procedidas de forma esporádica e sem controle de estoque. O embate era sempre no
cálculo da quantidade comercializada que, no final, terminava por aumentar ou
diminuir o total do imposto a ser recolhido.
Semana
passada, Tito Coletor, um dos mais intransigentes e ferozes cobradores de impostos
de Matozinho, acercou-se , na feira, da barraca de Quinco Magarefe, de
talonário em punho, pronto a cobrar a finta devida, para os cofres públicos ou, melhor, para os
bolsos do prefeito Sinderval Bandeira. Olhou de relance a carne de porco exposta no primeiro balcão e perguntou com
cara sisuda de quem esperava de antemão que seria ludibriado.
--- Boa
tarde, Quinco ! Quantos porquinhos matou nessa semana ?
O açougueiro,
sem encompridar conversa, com cara de comércio ruim, pôs água na fervura:
--- Comércio
ruim danado, Tito ! Matei só um porquinho. Mais , é prejuízo certo.
Tito,
experiente, macaco velho, correu os olhos pelos cantos mais recônditos do
balcão e contou, rapidamente, seis mocotós, meio escondidos em meio ao pernil.
--- Eita,
Quinco ! Só um porquinho ? Tô vendo ali seis mocotós naquele cantinho !
O magarefe
não perdeu a pose:
--- Pois é,
Tito ! Veja como são as coisas! Era um leitãozinho trucado, desses 4X4 , com
tração nas quatro patas !
O coletor,
acostumado aos desdobros dos feirantes, não se embananou. Viu, no outro balcão
do lado, uma dianteira enorme que parecia de um boi grande. Voltou ao
interrogatório para poder fechar o imposto :
--- E boi ,
só foi esse mesmo ou matou mais ?
Quinco, mais
uma vez, deu sua queda de asa:
--- Num foi
boi não, homem de Deus ! Mandei matar uma cabrinha grande e trouxe para vender
a carne.
Tito, meio
impaciente, correu os olhos e viu num balaio , embaixo da mesa, um úbere enorme
de vaca, coisa de fazer render uns oito litros de leite coado ao dia. Concluiu ,rapidamente,
que devia ter sido uma vaca holandesa
velha que o magarefe teria sacrificado e
trazido para venda na feira. Botou o homem contra a parede:
--- Cabra,
Quinco ? Cabra? Desse tamanho a dianteira ? Tu tá doido ? E esse úbere desse
tamanho ? Que diabo de cabra leiteira danada, foi essa ? Nannn !
Nosso
magarefe, mais uma vez não perdeu a pose. Encheu os olhos d´água, fitou o
cobrador com cara de cachorro vendo frango assando na brasa e deu sua versão:
--- Nem
queria falar nessa tragédia, Tito ! Até já tinha me esquecido e agora vem você
colocar o dedo na ferida. Manhãzinha cedo, pedi pros meus ajudantes matarem o porco
trucado e a cabra maior que eles encontrassem no chiqueiro. Parece que eu
estava doido ! Esqueci da minha cabrinha de estimação e quando cheguei para
arrumar as coisas para vir para feira, minha relíquia , Santa Inês, PO, tinha
sido sacrificada ! Ela dava seis litros de leite todo o dia !
Entre soluços
, terminou por completar a história:
--- Que vou
fazer eu da vida, Tito, agora que perdi
minha cabrinha leiteira, a minha Jojo
Todinho ?
Crato, 26/04/2019
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