sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Pai


 O rapazinho procurou o programa policial de televisão. Aquele especializado em expor todas as mazelas da miséria nas suas mais variadas feições. De um lado, o mundo real com suas vísceras expostas, do outro,  rostos falsamente indignados que sorviam aquele torvelinho de sangue, de violência com a avidez sádica de quem está convicto do isolamento total do que acontece naquela outra dimensão.     Chamado ao palco, o rapazinho, de uns vinte e poucos anos,  vestido com cópias bizarras das grifes esportivas mais famosas, cabelo esquisito como se cortado pelo cabeleireiro de Neymar, antes das primeiras quedas, entrou meio atarantado, como galo em rinha.  Interrogado, desenovelou os motivos da sua aparição naquele programa. Soubera da grande audiência e foi claro e direto. Esperava localizar seu pai, figura que nunca conhecera.  
 Segundo ele, sua mãe vivera, quando mocinha, em Teresina e trabalhava como doméstica. Sabe-se lá como, terminou enrabichada pelo motorista do patrão. Transas daqui, transas de lá ,  aconteceu o previsível : gravidez. O problema é que o motorista era casado e armou uma pegadinha para ela. Fingiu-se terno e loucamente apaixonado, comprou uma passagem para a namorada ir a Fortaleza, com a promessa de que seguiria no dia seguinte, depois de alguns acertos, e lá teriam vida em comum e esperarando o nascimento no bebê. A mocinha, inexperiente, seguiu viagem, com a passagem e alguns míseros tostões. Esperou em vão na rodoviária por dias e mais dias. Sem dinheiro, não tinha como retornar. Com ajuda de alguns pequenos comerciantes de rua, passou a vender bombons, milho verde e a dormir debaixo de alguma marquise próximo à rodoviária. A barriga foi crescendo e, um dia, por fim, amigos a levaram à Santa Casa, onde o reclamante nasceu. Depois de alguns meses, a mãe, por fim, começou um relacionamento com outro pequeno ambulante e, vida nova, passou a morar em um bairro periférico. Ao menos agora tinham um teto. Com o tempo, o casamento foi de água abaixo, por conta do alcoolismo do esposo. O menino, já crescidinho, passou , também a virar-se, vendendo quinquilharias , como ambulante, nas proximidades da rodoviária que um dia já lhe servira de abrigo. Agora, já taludo, tinha vida própria, arranjara um emprego de porteiro de edifício na Aldeota e se considerava um homem realizado.
Vinha ao Barra Pesada , por um motivo simples. Nem imaginou que estava no foro apropriado  ao abandono por que passara.   Soube que se aproximava o Dia dos Pais e ele, lembrou-se, então daquele sêmen que um dia lhe pôs no mundo. Mostrou um retrato desbotado do pai motorista que sua mãe lhe dera e que foi projetado na tela. Desejava encontrá-lo , soubera ainda residente no Piauí. Sabia da grande audiência do Programa Policial e que, quem sabe, haveria tempo de localizá-lo. Tudo correndo bem, desejava viajar até Teresina, abraçá-lo no seu dia e entregar-lhe um presentinho: uma lanterna, de olhinhos puxados, que comprara, a preço módico, de um amigo ambulante.
Do outro lado da telinha, telespectadores observavam a cena, incrédulos. Como alguém, depois de tamanha sacanagem, de um crime perpetrado fria e calculadamente contra a infância e a maternidade, teria a coragem de querer encontrar-se com seu algoz? E mais, sem aparentes sinais de ranço e de revolta? Que fios biológicos fortíssimos uniam pai e filho que se não apartavam mesmo diante dos mais violentos ataques sísmicos ?
O rapazinho saiu do programa feliz e com olhos brilhando. Tentava reconciliar-se com seu passado. Já não lhe pesava sob as costas a covardia inominável do genitor. Nascera numa manjedoura: um Jesus , filho de Maria,  apenas José não apareceu na foto. Mas muitos bichos pastavam por perto e reis magos acercaram-se do seu presépio, trazendo o incenso da presença, a mirra que embalsama a dor, o ouro  da solidariedade. Recompusera-se o milagre da vida. Faltava apenas, na cena,  a estrela brilhante que orientou  os reis magos. Talvez, por isso mesmo, agora, o rapazinho levava para o pai, depois de uma longa via crucis, a lanterna como presente. Quem sabe ela lhe servisse de guia e, rasgando os céus da sua velhice,   lhe iluminasse os dias e lhe aclarasse os turvos caminhos ?

Crato, 10 de Agosto de 2018   

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