O rapazinho procurou o
programa policial de televisão. Aquele especializado em expor todas as mazelas
da miséria nas suas mais variadas feições. De um lado, o mundo real com suas
vísceras expostas, do outro, rostos falsamente
indignados que sorviam aquele torvelinho de sangue, de violência com a avidez
sádica de quem está convicto do isolamento total do que acontece naquela outra
dimensão. Chamado ao palco, o
rapazinho, de uns vinte e poucos anos, vestido
com cópias bizarras das grifes esportivas mais famosas, cabelo esquisito como
se cortado pelo cabeleireiro de Neymar, antes das primeiras quedas, entrou meio
atarantado, como galo em rinha. Interrogado,
desenovelou os motivos da sua aparição naquele programa. Soubera da grande
audiência e foi claro e direto. Esperava localizar seu pai, figura que nunca
conhecera.
Segundo ele, sua mãe vivera,
quando mocinha, em Teresina e trabalhava como doméstica. Sabe-se lá como,
terminou enrabichada pelo motorista do patrão. Transas daqui, transas de lá
, aconteceu o previsível : gravidez. O
problema é que o motorista era casado e armou uma pegadinha para ela. Fingiu-se
terno e loucamente apaixonado, comprou uma passagem para a namorada ir a
Fortaleza, com a promessa de que seguiria no dia seguinte, depois de alguns
acertos, e lá teriam vida em comum e esperarando o nascimento no bebê. A
mocinha, inexperiente, seguiu viagem, com a passagem e alguns míseros tostões.
Esperou em vão na rodoviária por dias e mais dias. Sem dinheiro, não tinha como
retornar. Com ajuda de alguns pequenos comerciantes de rua, passou a vender
bombons, milho verde e a dormir debaixo de alguma marquise próximo à
rodoviária. A barriga foi crescendo e, um dia, por fim, amigos a levaram à
Santa Casa, onde o reclamante nasceu. Depois de alguns meses, a mãe, por fim,
começou um relacionamento com outro pequeno ambulante e, vida nova, passou a
morar em um bairro periférico. Ao menos agora tinham um teto. Com o tempo, o
casamento foi de água abaixo, por conta do alcoolismo do esposo. O menino, já
crescidinho, passou , também a virar-se, vendendo quinquilharias , como
ambulante, nas proximidades da rodoviária que um dia já lhe servira de abrigo.
Agora, já taludo, tinha vida própria, arranjara um emprego de porteiro de
edifício na Aldeota e se considerava um homem realizado.
Vinha ao Barra Pesada , por um motivo simples. Nem imaginou
que estava no foro apropriado ao
abandono por que passara. Soube que se aproximava o Dia dos Pais e ele,
lembrou-se, então daquele sêmen que um dia lhe pôs no mundo. Mostrou um retrato
desbotado do pai motorista que sua mãe lhe dera e que foi projetado na tela. Desejava
encontrá-lo , soubera ainda residente no Piauí. Sabia da grande audiência do
Programa Policial e que, quem sabe, haveria tempo de localizá-lo. Tudo correndo
bem, desejava viajar até Teresina, abraçá-lo no seu dia e entregar-lhe um
presentinho: uma lanterna, de olhinhos puxados, que comprara, a preço módico,
de um amigo ambulante.
Do outro lado da telinha, telespectadores observavam a cena,
incrédulos. Como alguém, depois de tamanha sacanagem, de um crime perpetrado
fria e calculadamente contra a infância e a maternidade, teria a coragem de querer
encontrar-se com seu algoz? E mais, sem aparentes sinais de ranço e de revolta?
Que fios biológicos fortíssimos uniam pai e filho que se não apartavam mesmo
diante dos mais violentos ataques sísmicos ?
O rapazinho saiu do programa feliz e com olhos brilhando.
Tentava reconciliar-se com seu passado. Já não lhe pesava sob as costas a
covardia inominável do genitor. Nascera numa manjedoura: um Jesus , filho de
Maria, apenas José não apareceu na foto.
Mas muitos bichos pastavam por perto e reis magos acercaram-se do seu presépio,
trazendo o incenso da presença, a mirra que embalsama a dor, o ouro da solidariedade. Recompusera-se o milagre da
vida. Faltava apenas, na cena, a estrela
brilhante que orientou os reis magos.
Talvez, por isso mesmo, agora, o rapazinho levava para o pai, depois de uma
longa via crucis, a lanterna como presente. Quem sabe ela lhe servisse de guia
e, rasgando os céus da sua velhice, lhe iluminasse os dias e lhe aclarasse os turvos
caminhos ?
Crato, 10 de Agosto de 2018
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