De onde
vem a tradição, profundamente matozense, de se pagar promessa de santo com
dois litros de cana e um saco de umbu ?
Há versões e mais versões deste
costume, vamos à mais aceita. A história de Matozinho confundia-se ,
umbilicalmente, com a do catolicismo na vila. Rezava a lenda que um missionário,
que se dirigia à capital, perdera o rumo e dera nas margens do Paranaporanga há
muitos e muitos anos . A hostilidade da seca, à época, fez com que permanecesse
ali por algumas semanas por conta de cacimbas abertas à margem do rio de onde brotava uma água um pouco salobra , mas
potável. Consta que ali tivera algumas
visões , quando tirava uma madorna debaixo de uma juazeiro frondoso, o certo é que,
alguns meses depois da partida, resolveu retornar e ali se estabelecer. Aos
poucos, atraídos pelas missas que a celebrar próximo a um grande cruzeiro que
fincou às margens do rio, começou-se a formar um arruado. Era a futura Vila de
Matozinho que brotava gravitando em torno da fé cristã.
Houve, no
entanto, um desses padres que destoava totalmente do padrão estabelecido até
então. Chamava-se Ludovico. Era um varapau de quase dois metros de altura,
magricela, elétrico e meio alvoroçado. Falava como se as palavras fossem
lançadas de sua boca como de um cano de pistola. Com ele não se percebia aquela
hipocrisia tão típica dos velhos sacerdotes que o antecederam, adeptos do “faça
o que eu digo, mas não faça o que eu faço”. Estabeleceu , publicamente, um
casamento público e notório, com uma Irmã
de Maria, e com ela vivia, abertamente :
o casal tinha quatro filhos. Se interrogado sobre o caso respondia, claramente,
que a invenção do celibato tinha sido mera convenção do catolicismo e aquilo
não tinha nenhuma sustentação nos livros sagrados: o primeiro papa, Pedro, não
fora casado? Por outro lado, era um
ferrenho ativista na política local, colocando-se, frequentemente, contra os
prefeitos e vereadores que, como sempre, não tinham qualquer sensibilidade
social e utilizavam seus bolsos como se fossem os cofres públicos. Gostava de
festinhas, de um sueca em final de tarde e um pé de ouro nos sambas de pé de
serra. O padre era um copo fenomenal e
tinha o hábito de degustar a cachaça, em longas talagadas, tirando o gosto com
umbu. Abençoava as relações gays , para o espanto dos poderosos da vila,
lembrando que qualquer forma de amor é válida e bem melhor que o livre tráfico
de ódio tão presente na sociedade. Chegou a sofrer ameaças de morte, mas não se
desviou um milímetro das suas convicções. Ludovico, por outro, levava uma vida
modesta e franciscana, acolhia os mais pobres , os humildes e os perseguidos ,
ajudava-os nas suas necessidades mais prementes, até parecia que acabara de
retornar da Montanha onde ouvira o famoso sermão. Talvez fosse essa transparência
que o tornasse tão querido, respeitado e
amado pelo seu rebanho.
Ludovico ,
por outro lado, tinha um atitude bastante condescendente com os pecadilhos
nossos de cada dia. Entendia que atitudes altruísticas diante da vida, a solidariedade,
a compreensão, o amor e a amizade, no final, contavam mais, diante do Criador,
do que tropeços pequenos ao longo do pedregoso caminho da existência. Suas
penitências tinham um padrão todo ludoviquiano de ser. Os dez mandamentos
necessitavam de um upgrade, no seu entendimento. Pecar contra a castidade devia
ser específico para a terceira idade, os jovens tinham mais era o direito de
fazê-lo. O “Não roubarás” devia ser , totalmente, excluído da atividade
política, já que era inerente àquela profissão. O “não desejar a mulher do
próximo” precisava ter uma correlação direta com a proximidade do próximo. No final, segundo Ludovico, no balançar da
peneira, ficava o mais importante deles: Amar ao próximo como a ti mesmo!”.
Quando Padre
Ludovico adoeceu gravemente, pairou uma grande consternação na região. A vila
já se adaptara ao Concílio Matozinho II impetrado pelo pároco. Ele partiu,
sereno, numa sexta feira, reclamando de Deus que devia ao menos ter deixado
desfrutar o final de semana: -- Bastava me levar na segunda, balbuciou o
moribundo ! O certo é que Ludovico se foi, mas ficaram muitas das suas histórias,
citadas, tantas e tantas vezes, pelos matozenses, como parábolas.
Um dia,
percebeu que o número de confissões estava insuportável. As pessoas tomavam o
precioso tempo do pároco para contar desvios pequenos e insignificantes que
podiam ser diretamente resolvidos em suas orações. Não bastasse isso, era o
mesmo público que vinha eternamente aos pés do padre como os mesmos pecadinhos repetitivos
de sempre. Rezavam apenas para poder voltar aos mesmos agravos. Resolveu,
facilmente, o problema com uma portaria onde, para organizar os trabalhos de
confissão estabelecia o atendimento: no sábado, para os adúlteros; domingo,
para os ladrões; segunda, para assassinos; terça, para os falsos testemunhas;
quarta, para os invejosos; quinta, descanso.
Contavam ainda que um
adolescente, em confissão, meio choroso, lhe confessou que havia pegado no
peito da namorada. Ludovico, sério e brusco, perguntou-lhe se tinha sido por
cima da blusa ou por baixo. O menino tremendo disse-lhe que tinha sido por cima
da blusa, apenas apalpara. O mão de Ludovico, atravessou a parte superior do
confessionário e imprimiu-lhe um croque fenomenal no quengo, seguida de um
advertência feroz:
--- Menino besta ! Aprenda,
seu zé-mané !Devia ter pegado por baixo da blusa, seu leso ! A penitência era a
mesma !
De uma outra feita,
segundo reza a tradição de Matozinho, uma
mulher, na confissão, sussurrou que estava tendo um caso com o padre da
vizinha vila de Bertioga. Não sabe como aquilo acontecera tão de repente.
Ludovico, pareceu espantado e revoltado e sapecou-lhe uma pena pesadíssima,
fora dos critérios normais da sua liberalidade.
---
Reze vinte e cinco rosários, esta é sua penitência !
--- Mas seu padre , isso
tudo ?
--- Isso sim ! É pra
você aprender ! Se você é da paróquia de Matozinho tem que cometer seus pecados
é nessa paróquia e não em outra, joviu ?
Pelo sim, pelo não, as
pessoas rezam para o Pe. Ludovico e o veneram como santo. Fazem promessas e
alcançam graças, prometendo o pagamento mais inusitado e tradicional da
religiosidade de Matozinho. Antes do primeiro trago, nos bares, é de praxe.
Derrama-se um tiquinho do aguardente no chão e ordena-se:
--- É pra tu, Ludu !
Crato, 18 de
Agosto de 2018
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