sábado, 25 de agosto de 2018

Sabath




                                               A pracinha encarnava ,naquele domingo,  seu  destino sabático. Os meninos corriam em volta,  iluminando com sua alegria  a fonte que um dia já fora luminosa. Casais conversavam, despreocupadamente, nos bancos espalhados em meio aos jardins que um dia já haviam florido. Velhos, em rodinhas  esparsas,  tricotavam sua infinita colcha de fofocas. Mulheres de meia idade transitavam com ar circunspecto, em busca dos templos,  com seu rosário de pedidos de proteção às divindades de sua devoção. No parquinho,  outros meninos revezavam-se na gangorra, nos escorregadores, nos tubos, nas casinhas com uma felicidade cristalina, transbordando das retinas. Nas barracas pessoas empanturravam-se de filhós, de sucos, de sandubas , de salgadinhos. Uma senhora vendia pipoca , um outro ambulante, bombons. O moço , em uma das extremidades da fonte, alugava carrinhos e motinhas para as crianças nelas montarem seus sorrisos. Outros vendedores ofereciam balões e pequenos brinquedos com a orientação infalível para a gurizada : “Chora que mamãe compra!”
                                    Ao redor da pracinha,  as lanchonetes estavam prenhes de bocas famintas , em busca do maná infalível dos domingos, dia também sabático dos afazeres domésticos: as pizzas. Todos pareciam celebrar não a sagração do fim de semana, mas a perspectiva depressiva da segunda que prometia reencaixar  as engrenagens em moto-contínuo das suas vidas repetitivas e comezinhas, em copiar-colar. Nas ruas laterais, carros passavam céleres,  carregando caras fechadas que previam a continuação do trabalho de Sísifo.
                                    A igreja da sé , defronte,  já tinha empreendido seu repicar de sinos, um álacre alerta aos fiéis. Naquele dia, quebrando suas milenares tradições, saíra do templo para ver o mundo lá fora. O sacerdote, nas festividades da padroeira, celebrava o culto num grande palco, para uma  comitiva de beatos, que, com ar algo distante, regateava os loteamentos do paraíso, balbuciando, em mantra , orações e preces quase que maquinalmente. Ao redor do palco, religiosos acertavam os últimos preparativos para a quermesse que devia se iniciar logo ao final da missa.
                                    De repente, alguns estampidos secos. Sobre um dos bancos da pracinha o corpo ensanguentado e in extremis de uma mocinha. Alguns novos componentes acrescentam-se ao cenário: a polícia vasculhando casas vizinhas em busca do homicida, por fim preso. Uma criança chorando inconsolavelmente. Uma iluminação especial para a tragédia: incontáveis luzes de celulares filmando, com um indisfarçado ar mesclado de revolta e de satisfação, a prisão do assassino e  o corpo já sem vida da mocinha no banco, que esperaria horas pela vinda da cavalaria , para o gáudio das redes sociais.
                                    Ao redor, o mundo nada se modificou. Os meninos continuaram a brincar, as pizzas desciam calmamente de goela abaixo, as conversas, nas rodinhas, apenas ganharam um assunto a mais. A missa continuou seu rito impassível, com os fiéis pedindo bênçãos, desejando “a paz de Cristo”, prometendo cristãmente solidariedade, amor e confraternização entre os irmãos. Um corpo jazia exangue sobre o banco. Ao derredor, as almas afogaram-se num plácido e impassível oceano sem marolas ,  o pantanoso  Mar da  Normalidade.

Crato, 25/08/2018     

Nenhum comentário: