A pracinha encarnava ,naquele domingo,
seu
destino sabático. Os meninos corriam em volta, iluminando com sua alegria a fonte que um dia já fora luminosa. Casais
conversavam, despreocupadamente, nos bancos espalhados em meio aos jardins que
um dia já haviam florido. Velhos, em rodinhas esparsas,
tricotavam sua infinita colcha de fofocas. Mulheres de meia idade
transitavam com ar circunspecto, em busca dos templos, com seu rosário de pedidos de proteção às
divindades de sua devoção. No parquinho, outros meninos revezavam-se na gangorra, nos
escorregadores, nos tubos, nas casinhas com uma felicidade cristalina,
transbordando das retinas. Nas barracas pessoas empanturravam-se de filhós, de
sucos, de sandubas , de salgadinhos. Uma senhora vendia pipoca , um outro
ambulante, bombons. O moço , em uma das extremidades da fonte, alugava carrinhos
e motinhas para as crianças nelas montarem seus sorrisos. Outros vendedores
ofereciam balões e pequenos brinquedos com a orientação infalível para a
gurizada : “Chora que mamãe compra!”
Ao redor da
pracinha, as lanchonetes estavam prenhes
de bocas famintas , em busca do maná infalível dos domingos, dia também
sabático dos afazeres domésticos: as pizzas. Todos pareciam celebrar não a
sagração do fim de semana, mas a perspectiva depressiva da segunda que prometia
reencaixar as engrenagens em
moto-contínuo das suas vidas repetitivas e comezinhas, em copiar-colar. Nas
ruas laterais, carros passavam céleres,
carregando caras fechadas que previam a continuação do trabalho de
Sísifo.
A igreja da
sé , defronte, já tinha empreendido seu
repicar de sinos, um álacre alerta aos fiéis. Naquele dia, quebrando suas
milenares tradições, saíra do templo para ver o mundo lá fora. O sacerdote, nas
festividades da padroeira, celebrava o culto num grande palco, para uma comitiva de beatos, que, com ar algo
distante, regateava os loteamentos do paraíso, balbuciando, em mantra , orações
e preces quase que maquinalmente. Ao redor do palco, religiosos acertavam os
últimos preparativos para a quermesse que devia se iniciar logo ao final da
missa.
De repente,
alguns estampidos secos. Sobre um dos bancos da pracinha o corpo ensanguentado
e in extremis de uma mocinha. Alguns novos componentes acrescentam-se ao
cenário: a polícia vasculhando casas vizinhas em busca do homicida, por fim
preso. Uma criança chorando inconsolavelmente. Uma iluminação especial para a
tragédia: incontáveis luzes de celulares filmando, com um indisfarçado ar mesclado
de revolta e de satisfação, a prisão do assassino e o corpo já sem vida da mocinha no banco, que
esperaria horas pela vinda da cavalaria , para o gáudio das redes sociais.
Ao redor, o
mundo nada se modificou. Os meninos continuaram a brincar, as pizzas desciam
calmamente de goela abaixo, as conversas, nas rodinhas, apenas ganharam um
assunto a mais. A missa continuou seu rito impassível, com os fiéis pedindo
bênçãos, desejando “a paz de Cristo”, prometendo cristãmente solidariedade,
amor e confraternização entre os irmãos. Um corpo jazia exangue sobre o banco.
Ao derredor, as almas afogaram-se num plácido e impassível oceano sem marolas ,
o pantanoso Mar da
Normalidade.
Crato, 25/08/2018
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