J. Flávio Vieira
Tenho uma preferência particular no
cômputo das maiores invenções da humanidade. Ao longo dos anos, pessoas geniais
e inventivas foram desenvolvendo técnicas e instrumentos que terminariam por
modificar, significativamente, o curso da história e o cotidiano dos seres
neste planeta. Ottmar
Mergenthaler (1854-1899), nascido na Alemanha, é um dos meus escolhidos. Ele terminou por
fixar-se no Estados Unidos e deixou esse mundo, prematuramente, aos 45 anos, ceifado
pela doença icônica dos Novecentos: a Tuberculose. Ottmar criou a máquina de Linotipo e
transformou, crucialmente, os rumos da impressão gráfica pelo mundo.
Talvez,
hoje, embebidos todos pela revolução digital-cibernética, esta conquista pareça
menor e desprezível. Desde a invenção da imprensa ocidental por Gutemberg, no
Século XV , os textos para impressão eram construídos por módulos móveis. Letra
por letra, montava-se um grande carimbo que, untado de tinta, levava ao papel
os caracteres gráficos que se desejavam fixar. As gráficas, assim, possuíam
enormes gavetas onde eram colocados os “Tipos” em incontáveis formatos e
tamanhos, separados pela espécie de letra. Cabia ao gráfico escolher tipo por
tipo e ir, aos poucos, compondo o grande carimbo para, depois, levar para as
máquinas de impressão. Daí surgiu o nome “Tipografia”. Quando governos
sentiam-se perseguidos ou denunciados pela imprensa, era comum empastelarem os jornais para dificultar a sua circulação, o
que consistia, simplesmente, em misturar todos os tipos, deixando as gráficas
inoperantes, até que, com muita paciência, conseguissem, novamente, reorganizar as
pecinhas em seus respectivos lugares, em ordem alfabética.
A
grande façanha de Mergenthaler foi a
invenção genial da máquina de Linotipo. A geringonça, gigantesca, mais ou menos
do tamanho de um guarda-roupas de quatro portas, tinha um tanque na sua parte
superior onde era fundido o chumbo que descia por canaletas até um ponto onde
eram moldadas placas, uma espécie de tijolinho. Estas placas chegavam ainda
quentes e maleáveis para que se esculpissem, um pouco mais abaixo, palavras nelas, comandadas por um teclado (
parecido com uma grande máquina de datilografia) que era manobrado por um artista
gráfico. À medida que eram esculpidas, após um processo de refrigeração, iam
pouco a pouco descendo e se organizando, lado a lado, organizadamente, formando
então um grande carimbo que era levado para a impressão das páginas de livros e
jornais. Imaginem a complexidade desta descoberta! Tinha-se um processo de
fundição/escultura/refrigeração/arrumação
das plaquetas de chumbo! Além de tudo, após o processo gráfico, as
placas podiam ser fundidas muitas vezes e reaproveitadas, em outros projetos
gráficos ! Eram possíveis de seis mil a
oito mil letras esculpidas por hora com o guarda-roupas de Ottmar. A
inventividade do alemão fez com que se intensificasse a velocidade nas
gráficas, aumentando a produção de livros e jornais, tanto que Mergenthaler é
considerado o segundo Gutemberg.
Quem
, por acaso, mete as fuças na construção de livros e jornais , sabe,
perfeitamente, que juntinho de nós trabalha um capeta tinhoso : o Satanás do
erro e da incorreção. Por mais que redatores, revisores e copidesques se
empenhem na perfeição do trabalho, não tem jeito! O capeta estará ali , pertinho, esperando o momento de
plantar os erros ortográfico, sintático, gráfico, ou de pontuação...
Nos
anos 50, o jornal católico “A Ação”,
aqui em Crato, era editado ainda com os primários tipos móveis. Tinha na
redação um dos maiores latinistas cearenses: o Padre Neri Feitosa. Inteligente,
profundamente versado na língua portuguesa vernácula, Neri vivia em tempos em
que erro de concordância era passível de pena de morte. O hebdomadário lançou
uma série de reportagens em que, semana após semana, se mostrava a biografia
dos monsenhores da região. Depois de alguns meses, dado por fim o seriado,
alguém, preocupado, lembrou nosso redator de que escapara um nome importante: o
Mons. Tavares; o que trazia um certo desconforto nas hostes religiosas locais.
Neri, então, mostrando jogo de cintura imprescindível a quem exerce a função,
resolveu que sanaria o problema na próxima edição, o que realmente o fez. O
artigo começava enfaticamente : “Deixamos, propositalmente, por último, nesta coluna biográfica , o Mons. Tavares porque ele é o chefe da Milícia Católica no Cariri”. Na hora da
composição, o capeta da incorreção, plantou o tipo errado. No outro dia, bem
humorado, mons. Tavares lia o jornal quando se deparou com o erro fatal na sua
biografia . Ao invés de Chefe da Milícia Católica, saíra impresso : Chefe da
Malícia Católica... Tavares, sorridente, comentou que a emenda saíra pior que o
soneto.
Com
o avanço da tecnologia, imaginou-se que o capeta seria expulso definitivamente das redações e
relegado ao seu ostracismo infernal. Leda pretensão! Ele continuou nas
engrenagens das máquinas de linotipo, escondeu-se nos bytes do computador,
enfurnou-se até nos auto corretores dos celulares. Uma conhecida nossa quase
perde o emprego numa multinacional porque , ao conversar com sua superiora,
pelo What´sapp, ao teclar : “Certo, Chefa!” , o autocorretor corrigiu para “Certo,
Chata!” e ela enviou a mensagem maquinalmente.
Na
era dos computadores, então, este problema poderia estar sanado de uma vez por todas. O Word carrega seu pai dos burros
próprio e alerta para as falhas mais corriqueiras . Mas peca com a sintaxe, com
as palavras homônimas, com o termo errôneo naquele local, mas existente em uma
outra acepção. Há alguns anos, um jornal da região, já vivia nos áureos e
gloriosos tempos do offset e da edição por computação gráfica. Quanta
facilidade ! Quanto avanço ! Os digitadores abriam as caixas já prontas das
colunas e apenas montavam as páginas anexando as novas matérias e as novas
fotos. Pois bem, numa das edições, o diagramador estava completando a Coluna
Social. Retirou todas as notícias da edição anterior e colocou as mais atuais,
como sempre tentando por qualidade em que não tem. Sacou as imagens antigas e
incluiu as fotos atuais das locomotivas e dos bacanas da região. O Capeta da
Incorreção, no entanto, estava ali espreitando o momento exato de atacar. E
sabia perfeitamente que o tamanho do avanço tecnológico é sempre proporcional à
imensidão do erro possível. Tudo parecia perfeito, com uma única exceção. O
técnico colocou as novas matérias, as novas fotografias, mas esqueceu de apagar as legendas
identificadoras de cada foto. No outro dia, edição na rua, a catástrofe estava
instalada. Uma das fotos mostrava um juiz caririense, de cara empapuçada, sério
que só uma vaca mijando, como se alguém tivesse acabado de lhe avisar que iam
retirar seu auxílio-moradia. Aquela cara de quem está há três dias sem ir ao
banheiro, ótima para se fazer cobrança. Logo abaixo, a antiga legenda que
deveria ter sido sacada. Referia-se, na edição anterior, a uma aniversariante
adolescente e dizia assim, agora resumindo a cara do juiz: “Essa coisinha fofa, quinze aninhos, responde pelo nome de Bianca”.
Até o Capeta riu baixinho da presepada,
com medo do processo.
Crato,
27/04/2018
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