Amanhece. Um
vento úmido sopra do nascente, como o último bocejo matutino da boca da noite.
Galos , tal numa corrida de revezamento, vão passando o bastão do canto , de
bico a bico, confeccionando o crochê da manhã. Os primeiros raios
espriguiçantes de sol postam-se a limpar
a névoa que lambuza os olhos da serra, como uma remela. A aurora preguiçosa revolve-se
no já diáfano véu da treva como que se recusando a despertar. Amanhece.
Na cidade, as almas
serpenteiam nas ruas , sonâmbulas, num teatro de sombras, a meio caminho entre a luz e a escuridão. O
aposentado equilibra-se na sua cestinha, em busca do mercado, como se o maduro,
o sazonado precisasse do verde reparador das frutas e hortaliças. A mocinha, abraçada
com seus livros, com disposição de anteontem, marcha para a escola em busca de suas
vãs certezas. No ponto do ônibus, operários, com suas marmitas, carregam a
plena convicção que farão um novo sacrifício das suas vidas no altar do deus Mercúrio.
Carros amontoam-se nos sinais, buzinando como trombetas, acreditando que farão
ruir os muros de Jericó. As lojas , aos pouquinhos, abrem suas portas, a meio
pau, como adolescentes tímidas e furtivas. No campo, agricultores preparam a terra, com
vagar, sem saber bem se aradam
perspectivas de novas colheitas ou se abrem covas que os convidam ,
lobregamente, para o coito terroso derradeiro: semente ou adubo ? Aos poucos a vida se vai desvencilhando da
letargia cúmplice da noite. Amanhece.
Abre-se o orifício
da faina e do azáfama na barragem do
dia. A vida urge, o tempo exiguifica-se. O liquidificador do cotidiano começa a
aumentar a velocidade de suas lâminas: daqui um tiquinho a solidez do sonho
tornar-se-á um suco acre , insípido, intragável. Existir será apenas uma
hipótese longínqua e inacessível. Um verbo intransitivo, impessoal e intransitável. Numa sinfonia repleta de labores
e sacrifícios, viver talvez represente um insignificante sustenido no meio de
uma chuva de bemóis ou um pequeno breque
nesta partitura, um interlúdio entre uma
e outra vicissitude.
Em meio ao turbilhão
que , paulatinamente, se vai formando, só um personagem destoa no cenário. Um
bêbado , cambaleante, aos tropicões, atravessa a rua. À deriva, sem bússola ou
sextante procura o rumo de casa. Carrega consigo os eflúvios das libações
noturnas. Varou o ventre da noite com o sabre da sua boêmia. Enquanto a cidade
desperta, ele , na contramão, se entregará ao sono . Descobriu que a terra, como
a lua, possui também uma face oculta. Ali construiu sua morada, distante das
trevas opressivas dos dias, onde o sol ressona e as noites eternamente
amanhecem.
Crato,
06/04/18
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