sexta-feira, 6 de abril de 2018

Amanhece



Amanhece. Um vento úmido sopra do nascente, como o último bocejo matutino da boca da noite. Galos , tal numa corrida de revezamento, vão passando o bastão do canto , de bico a bico, confeccionando o crochê da manhã. Os primeiros raios espriguiçantes de sol  postam-se a limpar a névoa que lambuza os olhos da serra, como uma remela. A aurora preguiçosa revolve-se no já diáfano véu da treva como que se recusando a despertar. Amanhece.
                            Na cidade, as almas serpenteiam nas ruas , sonâmbulas, num teatro de sombras,  a meio caminho entre a luz e a escuridão. O aposentado equilibra-se na sua cestinha, em busca do mercado, como se o maduro, o sazonado precisasse do verde reparador  das frutas e hortaliças. A mocinha, abraçada com seus livros, com disposição de anteontem, marcha para a escola em busca de suas vãs certezas. No ponto do ônibus, operários, com suas marmitas, carregam a plena convicção que farão um novo sacrifício das suas vidas no altar do deus Mercúrio. Carros amontoam-se nos sinais, buzinando como trombetas, acreditando que farão ruir os muros de Jericó. As lojas , aos pouquinhos, abrem suas portas, a meio pau, como adolescentes tímidas e furtivas.  No campo, agricultores preparam a terra, com vagar, sem saber bem se aradam  perspectivas de novas colheitas ou se abrem covas que os convidam , lobregamente, para o coito terroso derradeiro: semente ou adubo ?  Aos poucos a vida se vai desvencilhando da letargia cúmplice da noite. Amanhece.
                            Abre-se o orifício da faina e do azáfama na  barragem do dia. A vida urge, o tempo exiguifica-se. O liquidificador do cotidiano começa a aumentar a velocidade de suas lâminas: daqui um tiquinho a solidez do sonho tornar-se-á um suco acre , insípido, intragável. Existir será apenas uma hipótese longínqua e inacessível. Um verbo intransitivo, impessoal e  intransitável. Numa sinfonia repleta de labores e sacrifícios, viver talvez represente um insignificante sustenido no meio de uma chuva de bemóis ou um  pequeno breque nesta partitura, um interlúdio  entre uma e outra vicissitude.
                            Em meio ao turbilhão que , paulatinamente, se vai formando, só um personagem destoa no cenário. Um bêbado , cambaleante, aos tropicões, atravessa a rua. À deriva, sem bússola ou sextante procura o rumo de casa. Carrega consigo os eflúvios das libações noturnas. Varou o ventre da noite com o sabre da sua boêmia. Enquanto a cidade desperta, ele , na contramão, se entregará ao sono . Descobriu que a terra, como a lua, possui também uma face oculta. Ali construiu sua morada, distante das trevas opressivas dos dias, onde o sol ressona e as noites eternamente amanhecem.

Crato, 06/04/18

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