sexta-feira, 20 de abril de 2018

Ateliê


Lembrei-me de uma história antiga, recentemente, que muito reflete essa sina de bumerangue da vida brasileira. Visitando uma Exposição de Arte  Moderna, num desses museus contemporâneos, um  sujeito espanta-se com uma obra inusitada. Uma grande tela, completamente branca, tendo apenas, abaixo, a assinatura do autor: Teo Syd - 2017. Junto, em uma placa metálica dourada, aposta no lado direito,  com letras  alto-relevo, o nome da obra branca esdrúxula : “A Fuga dos Judeus do Egito”.  Impressionado com a criatividade do pintor, o visitante aproxima-se  e procura tentar entender a concepção da obra. Onde estava retratado o episódio bíblico, numa tela inteiramente branca ?
--- Este quadro representa a fuga dos hebreus do Egito ?
--- Isso mesmo ! -- Retorna o autor.
--- Mas cadê os hebreus, que não consigo identificar no quadro ?
--- Os hebreus já atravessaram o Mar Vermelho e foram embora em busca de Canaã ! -- Confirma o artista ?
--- E o Mar Vermelho com suas margens milagrosamente escancaradas , para a travessia do povo de Deus ,   onde está ?
--- As margens abriram muito, para a passagem de Moisés e sua corriola e as águas estão fora das extremidades da pintura, assim não aparecem !
--- E cadê o exército do Faraó que vinha em perseguição dos judeus ? --Quis saber o visitante.
--- Ele se atrasou e ainda não chegou. Acaba de sair do Cairo !
                                   O quadro retratava um momento ímpar, onde alguns eventos já tinham ocorrido e outros ainda estavam por acontecer. Entre o que ainda não foi , o que já ocorreu  e o que ainda será.
                                   Esta história vem a reboque de uma mais recente. Semana passada, em Brasília, numa Exposição de Arte de Vanguarda, um artista plástico, Arcanjo Vannicelli,  apresentou um quadro similar ao da história anterior. Tela branca, quase imperceptível, na galeria alvíssima e iluminada. Logo abaixo o nome alatinado da peça : Terra Temerosus Brasilis. A peça chamou a atenção de um desses ratos de galeria. Ele se acercou de um senhor que cenho algo carregado, que se postava, de pé, em um dos lados da pintura. Afastou-se, observou com distância regulamentar, logo depois bem próximo e, curioso, puxou conversa.
--- Esta quadro pretende representar o Brasil, nos dias atuais?  É isso ?
--- Isso mesmo, meu senhor ! Tenta trazer um pouco do espanto porque todos estamos passando.
--- Onde estão simbolicamente representados os verdadeiros governantes do país ?
--- Foram expulsos ou tão presos, não aparecem na obra !
---- E onde podemos ver os atuais governantes, que tomaram o poder de assalto ?
--- Escondidos ! Não podem aparecer, sob risco de linchamento !
--- E o poder judiciário , onde posso identificar aqui nesta tela ?
--- O céu não aparece na tela, meu amigo, está fora do foco. Os juízes estão no Olimpo: metade pensa que é  Deus e a outra metade tem certeza!
---- E o povo, cadê ? Onde está escondido, nesta brancura toda ?
---- O povo está só observando, como o senhor, ele não faz parte da pintura !
                                   Impaciente, nosso visitante quis entender melhor detalhes  daquela que um dia poderia ter sido uma aquarela. Achou estranho a obra em branco. Cuidadosamente, passou a mão e não sentiu o relevo do quadro e nem a aspereza do pano. Voltou-se, então, para o seu interlocutor.
--- Oxe ! Não tem tela aqui , não ! Isso é parede. A obra é um mural ?
--- Meu amigo, não lhe conto, até ontem tinha. Venderam a peça de madrugadinha, por uma pechincha !
--- O Senhor, como autor da obra, permitiu a negociação por uma ninharia ?
--- Eu não sou autor da obra não! Sou um crítico de arte !
--- E quem é o sujeito que pintou o quadro ? Cadê ele !
--- O Ângelo ?  Ele pra tudo que pintava ou fazia só usava a direita. Tentou numa luta, nesses dias,  um golpe  e caiu do cavalo.  
--- Ah ! Então o senhor é, aqui, o  responsável por isso tudo !
--- Eu ?
--- Você sim ! -- Firma o visitante, com alguma aspereza.
--- Você num mora aqui em Brasília ?
--- Não, eu sou de Curitiba, meu senhor !
--- Ah, seu irresponsável,  o senhor mora lá, é ?!
--- Moro !

Crato, 30/04/2018
                                     

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