Cenildo acordou
cedinho. Aonde deixara guardado aquele sono interminável da juventude? De
hábitos noctívagos, sempre ralhara com aquele necessidade de levantar cedo e
partir para o trabalho na repartição onde enfrentou, por muitos anos, a pouca
flexibilidade do Relógio de Ponto, sempre
o esperando com aquela cara de poucos amigos. Agora , um desses contrassensos
da vida, quando vestira o pijama de aposentado, e as manhãs se ofereciam
lúbricas para o seu deleite, Morfeu , como um amante temeroso, saltava pela
janela do quarta ainda de madrugadinha.
Sem muito ter
o que fazer com os lençóis, Cenildo ganhou a rua aos primeiros raios do sol.
Peitou com os primitivos espreguiçares da cidade ainda insone e com seus
personagens primais: o velho que trazia o pão ainda quente da padaria;
operários que corriam para o trabalho, como ele um dia o fizera; o primeiro bêbado da
manhã e o último ébrio da noite anterior; os comerciantes que abriam as bocas
sedentas de seus armarinhos. Para ele, aquele era um dia especial. Rumou até a
repartição da prefeitura para tirar um diploma inusitado: A Carteira de Idoso.
Pois é, era preciso comprovar, com documento , sua condição de senilidade para
poder auferir os enormes benefícios que a velhice pode proporcionar. De posse
da carteirinha, teria direito a estacionamento gratuito e com vagas especiais,
prioridade em filas, abatimento em passagens. Cenildo seria , por fim, um velho
documentado, assumido e regulamentado. Perderia,
claro, a partir daquele momento, a licença poética de mentir a idade, de usar
subterfúgios para parecer mais jovem: pintar o cabelo e a barba, aplicar o Botox, usar roupas adolescentes, abastecer o som do
carro com funks, breganejos e forrós estridentes da hora. Demorara um pouco a tomar a decisão drástica,
esperou lá uns cinco anos, mas , por fim, entendeu que já não era possível
deter a inundação com uma caquera de passarinho: perdido por cem, perdido por
mil ! Meio a contragosto, chegou no departamento municipal, ainda no romper da
aurora. Na fila, já lá se empertigavam uns dez velhotes, insones como ele, e com aquela cara de quem entornou um suposto copo
de leite condensado e só então descobriu que se tratava de chá de boldo. Depois
de algumas horas de espera, chegou por fim ao pé do balcão. Aguardava-o um
barnabé de cenho franzido que maquinalmente preencheu o
formulário e anexou os documentos que Cenildo lhe passou. Sem levantar a cabeça,
informou ao solicitante que voltasse com uma semana para pegar a carteirinha.
Cenildo
retornou no prazo combinado. Depois da aposentadoria andava meio a esmo, à
deriva, perdido como cachorro que cai de
caminhão de mudança. Tanto tempo na rua, a casa lhe funcionava como simples
guarida noturna. Não entendia do seu funcionamento, do fluxo diário e contínuo
do seu pulsar. Apenas a cama e a TV lhe pareciam familiares. Depois de
devidamente emplacado como idoso, Cenildo acrescentou algumas dúvidas mais ao
seu estranhamento. A carteirinha como que lhe deu os superpoderes do Homem
Invisível. Trafegava pelas ruas como um espectro. Em casa, quase que passava
desapercebido. Deslizava em meio às multidões na rua, como uma agulha que
tentasse, loucamente, tecer uma colcha de retalhos com seu fio invisível. Muitas vezes assaltou-o a sensação de que já
tinha feito a passagem e estava perambulando por este mundo, como alma penada.
A única prova de que isto não acontecera é que, a cada final de mês, como por
encanto , recobrava , novamente, seu estado sólido e concreto. A partir do dia
vinte e oito, os filhos e a esposa lhe sorriam, o padeiro o cumprimentava com
certa galhardia, o dono da bodega lhe fazia mesuras, alguns amigos das antigas
acervavam-se e puxavam conversa. A
visibilidade, no entanto, durava pouco: por volta do dia dez, retornava,
aos poucos, ao estado gasoso, à fluidez
etérea e transparente . Era como se hibernasse.
Cenildo tomou
nas mãos a carteirinha mágica. Pareceu desvendar, em meio aos traços vetustos,
a silhueta de um menino. Onde estava ele
agora ? Investira-se da mesma invisibilidade do velho que lhe embotava as
feições ? Do fundo do peito, teve a
certeza de que se morresse, voltaria , contraste dos contrastes, a ser vívido,
palpável e real como já fora um dia, ao menos enquanto durasse os trâmites do inventário, da divisão de bens,
da rapinagem final dos seus despojos de guerra.
Crato,
11/05/2018
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