sexta-feira, 23 de março de 2018

Blackout



                                              
O blackout durou apenas algumas horas. De repente, os homens foram arrancados das suas rotinas, como um carro que , a contragosto, deixa a autoestrada e envereda dor veredas íngremes e esburacadas. O celular deixou de ser um utensílio vital, o computador  tornou-se um trambolho no canto da sala, a Internet desconectou a aldeia global. A TV, momentaneamente, perdeu sua capacidade hipnótica e manipuladora: olhos apagados já não mais cuspiu sentenças como um oráculo de Delfos nesses tempos igualmente sombrios. Em meio à escuridão,  lamparinas e velas bruxuleantes revelavam vultos aracnídeos  esgueirando-se ,em câmara lenta,  confundindo-se com as sombras projetadas  nas paredes. Carros , temerosos como seus motoristas, arrastavam-se,  paquidermicamente,  nos cruzamentos que haviam perdido a bússola dos  sinais de trânsito. O Comércio e a Indústria viram-se  tolhidos  de seus motores propulsivos. Alguns vultos até ensaiaram colocar novamente as cadeiras na calçada, agora sem a ditadura compulsiva da televisão da sala. Súbito, o nosso mundo reduziu-se às minúsculas dimensões da nossa cidade, da nossa rua, das nossas casas, dos nossos quartos.
                                               Incrivelmente, descobrimos que havia, sim,  uma lua no céu, agora já sem  a concorrência das luzes de neon.  Uma lua nos últimos tempos com suas duas faces ocultas,  estendeu, novamente,  sua coifa argêntea    , hoje,  monopólio dos astrônomos ,  viu-se devolvida aos enamorados. O escurinho passou, novamente, a ser cúmplice da paixão e a leitura em Braile mostrou  sua importância expandindo-se além dos muros do Instituto Benjamim Constant. Alargaram-se os horizontes dos outros quatro sentidos.  Reaprendemos, rapidamente a revelarmo-nos,  como fotografia,  nas câmaras escuras  deste mundo a media luz. As nuances passaram a ser reveladas e cultuadas. Na treva, pequenos detalhes, discretos matizes defenestram, muitas vezes, percepções até então desconhecidas. No breu , como na vida, essas percepções são meros simulacros, silhuetas de uma verdade perseguida e, eternamente, inalcançada.
                                               A penumbra nos trouxe a revelação de que existe sim, um outro mundo vívido à nossa volta, longe dos holofotes da realidade cotidiana.  Somos meros fantasmas neste planeta, vagando, caoticamente,  entre luzes e  sombras.

Crato, 23/03/2018      

Um comentário:

Fatinha,Morais.. disse...

MUITO BOM.DR JF PINHEIRO VIEIRA.LUA LUAR.....