J. Flávio
Vieira
Raimundo Correia, um dos mais
inspirados poetas brasileiros, tem um
soneto que reputo como um dos mais bonitos da língua portuguesa. Chama-se “Mal
Secreto” e diz na suas duas quadras:
Se a cólera que espuma, a dor que
mora
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
N’alma, e destrói cada ilusão que nasce,
Tudo o que punge, tudo o que devora
O coração, no rosto se estampasse;
Se se pudesse o espírito que chora
Ver através da máscara da face,
Quanta gente, talvez, que inveja agora
Nos causa, então piedade nos causasse!
Lembrei esse poema
estes dias, quando o país atravessa uma fase extremamente sombria e careta. Acredita-se
que foi há seis mil anos que os egípcios
introduziram um novo método de identificar criminosos: tatuavam-nos para evitar a fuga. Este costume expandiu-se
para o Império Romano e, no Século XIX,
os americanos e britânicos procediam da mesma maneira com seus desertores afim
de facilitar o reconhecimento. Na II
Grande Guerra, os nazistas utilizaram a moda milenar, marcando e numerando os judeus , como se ferrassem um rebanho de
gado. Este hábito, assim, sempre esteve intimamente associado ao que há de mais
espúrio e deplorável na natureza humana.
No início
deste mês, dois tatuadores , em São Bernardo do Campo, Maicon Carvalho dos Reis, e seu
vizinho, Ronildo Moreira de Araújo, foram presos em flagrante pela polícia
civil, por um crime absolutamente insólito. Eles tatuaram um jovem de 17
anos, na testa, com os dizeres : “Eu sou
ladrão e vacilão”. Os tatuadores acusaram o menor de roubo e, simplesmente,
julgaram e estabeleceram a pena. Como juízes
reencarnados, carregavam consigo , ao
menos, seis mil anos de tradição neste tipo de tortura. Não bastasse isso, cientes de que tinham sido
absolutamente justos e não haviam cometido nenhum crime, divulgaram o ato, com
fotos e detalhes, sentindo-se heróis destemidos
e audazes, na Ilíada dos novos tempos : As Redes Sociais.
O jovem tatuado é usuário de
drogas, o caso repercutiu mundo afora e os novos Taliões terminaram presos,
respondendo a crime de tortura que , em caso de condenação, pode resultar em pena de dois a oito anos de
cadeia. Por incrível que possa parecer, muitos o comentários na mídia, pareceram francamente a favor da atitude tomada pelos tatuadores:
eles têm seguidores ferrenhos dos seus métodos. Não nos causa espécie esta
constatação quando vemos, todo santo dia, pessoas, das mais diversas classes
sociais, defendendo a Tortura, a Pena de Morte, o Armamento da população Civil,
o Extermínio dos Índios e Posseiros, a Ditadura, Corruptos e Corruptores.
Este mesmo grupo, dizendo-se, em geral, religiosos e cristãos ( pasmem os pouco
indignados de plantão !), posta-se francamente contra os defensores dos Direitos Humanos e das Causas Ambientais. Avançamos,
imensamente, nos últimos séculos na área tecnológica, mas humanamente, mal
descemos das árvores.
Imaginem a barbárie, se ,de
repente, todos passarem a se arvorar de juízes e policiais! Sei que essa ânsia
salta fácil do cidadão comum quando percebe o total esfacelamento da justiça no
país. Em quem diabos mais se pode confiar se até muitos integrantes da Suprema
Corte do Brasil mostram-se parciais, volúveis, partidários e intensamente
ligados aos ditames do Capital ? A pena egípcia executada contra o ladrão de
bicicleta de São Bernardo, quatro milênios depois, é muito pior do que a prisão. É uma penalidade
eterna, impossível de reabilitação. O apenado carregará, para sempre, a pecha ,
no rosto, mesmo que um dia resolva mudar de vida, arranjar emprego, seguir carreira religiosa. Não muito diferente
da roupa amarela que os judeus eram obrigados a usar em tempos de Inquisição,
ou da numerologia nazista.
O mais terrível em tudo isso é que
os defensores do Tatoo, da Pena de Morte, do “Bandido bom é Bandido morto”, são
extremamente seletivos na sua escolha. Os ladrões de bicicleta devem ir para o
cadafalso e para os salões de tatuagem, mas os donos dos helicópteros de
Cocaína, os carregadores de mala do Caixa 2, os estelionatários da alta
política brasileira, estes não ! Precisam de justiça! São figuras acima de qualquer
suspeita! Manda para o Supremo e pede para a Roleta viciada escolher o Relator!
Pede vistas! Dá Habeas Corpus! Envia para prisão domiciliar porque precisam,
coitadinhos, cuidar dos filhinhos deles ! E se for grandão mesmo, manda que ele escolha
os juízes que o vão julgar e os promotores que o vão acusar!
Já que, agora, voltamos aos tempos
dos faraós, sabendo que não tem ninguém perfeito nesse mundo, eu pergunto aos
defensores da tatuagem: no seu caso, amigo, qual seu pior defeito ? Qual você escolheria para que tatuassem na sua
testa?
Crato, 29 de Junho de
2017.
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