J. Flávio Vieira
Afrodízio Chinchorro subiu, ontem, num banco da Praça
Siqueira Campos, e cuspiu, quase aos
berros, um discurso mais inflamado que olho de menino com conjuntivite. Quem o
visse de longe, teria a certeza que se tratava de um Bakunin , ou um Engels
falando à massa, depois de lhe terem pisado na unha encravada. Chamou todos à
luta, conclamou o povo para invadir as ruas que lhes pertenciam por direito,
contra os despautérios promovidos pelo
governo com suas medidas assassinas , que rasgavam e picotam a CLT,
restabeleciam a Escravidão no Brasil e
destinavam a aposentadoria apenas para uns poucos macróbios : Matusalém, Noé, Tália
Márcia, Dr. Borges, Belo Leite.
--- Às armas
se for preciso ! Dignidade ou Morte ! -- Vociferou Afrodízio , com rosto
vermelho como se untado de urucum.
Na Siqueira
Campos, muitos manifestantes já se
concentravam, esperando o deslocamento até o Giradouro, percebendo que , na
perspectiva do estupro, à vítima cabia ao menos o direito de espernear.
Bandeiras vermelhas, pobres, professores, religiosos, organizações sociais se
mesclavam , numa brilhante colcha de retalhos, uma pequena mostra daquela maior
que compunha, historicamente, a grande
aquarela brasileira. Estranhamente, agora, faltavam os membros antigos da indignação
seletiva : as panelas de Teflon e as Hilux com seus adesivos Verde-amarelos. À
Mídia, também, já não interessava a transmissão das levas de manifestantes,
agora apelidados de vândalos e de barreira aos verdadeiros trabalhadores que
seriam aqueles que não adeririam à Greve. A turba se perguntava, então, se quem estava impedindo as pessoas de
trabalharem eram eles ou o governo que produziu, em pouco mais de um ano, quatorze
milhões de desempregados. Por que servir
pão de ló para os legislativo e
judiciário e só mucunã para o povaréu ?
A fala dura e
progressista de Afrodízio, nosso Lênin tupiniquim, mostrou-se a todos como típica dos tempos bicudos em que
vivíamos. Chinchorro nunca fora de se manifestar publicamente, levara sempre
vida reclusa e pacata. E mais : sempre fugira do trabalho, como vampiro do alho. Até os quarenta , como
filho único, vivera à sombra frondosa da mãe, pensionista de um alto funcionário
da Receita Federal. Depois que seu guarda-chuva foi fazer a contabilidade com o
Criador, rápido engraçou-se da viúva de um procurador e continuou
levando a vida agora sob novo patrocínio. Não precisa achar nada, só procurar o
que fazer, como seu antecessor. Nem em outubro, com sol a pino, se conseguia ver
suor escorrendo do seu topete. Assim, o discurso de Afrodízio desencadeou
emoções díspares na plateia. Os empresários locais tomaram aquilo como uma
gozação: logo quem vinha a público defender e incitar os trabalhadores, um
preguiçoso de carteirinha! Os manifestantes, por outro lado, entenderam a
revolta de Anfrízio como sintomática dos novos tempos : até ele -- quem diria ?
-- estava se sentindo prejudicado, a que ponto o descalabro governamental tinha
chegado !
A turba,
finalizado o discurso inflamado e
inflamável , aplaudiu-o freneticamente. Aguardavam-no para a passeata e as
manifestações que se seguiriam. A coisa está feia, comentaram com ele, até
Anfrízio vai fazer greve ! O homem, no entanto, ainda rubro e meio encolerizado
, fez chegar ao ápice sua indignação :
--- Não ! Não
! Não ! Contra esta bandalheira toda, a safadeza generalizada que agora governa
esse país, eu deixo aqui o meu protesto . Vocês, políticos, para não trabalhar ainda precisam roubar ,
afanar e lascar os outros ! Vocês não
são dignos do ócio ! Irresponsáveis ! Não quero me misturar com salafrários
feito vocês ! Amanhã, mesmo vou procurar
emprego !
Crato,
29/04/17
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