Era um domingo na pacata Vila do
Crato. Há exatos duzentos anos, a
vilazinha resumia-se a uma pequena praça central de onde saiam radialmente onze
ruelas. No extremo sul cearense, o Crato
sempre teve uma ligação fortíssima com Pernambuco, mesmo depois da nossa
emancipação daquele estado, no
finalzinho do Século XVIII. Boa parte da nossa colonização branca dali procedeu,
de lá também importamos a nossa mais
preponderante cultura: a cana de açúcar e as ideias iluministas viriam também a reboque.
Naqueles idos, o Ceará vinha assoberbado de muitos problemas: uma seca que já
se arrastava por mais de dois anos e uma
consequente carestia nos gêneros de primeira necessidade; o domínio português
no comércio da Província revoltava os comerciantes nativos; por outro lado,
após a chegada da família real, o Sul do
país começou a se tornar preponderante no Brasil, relegando o Nordeste a um
plano inferior.
Pois foi em
meio a esse cenário, que naquela fatídica manhã de 3 de Maio de 1817 , um seminarista cratense do
Seminário de Olinda, de 22 anos, envergando sua batina negra, subiu ao altar da Igreja da Sé , após a missa
dominical. Com voz forte e empostada leu um manifesto enviado de Recife em que
proclama a Independência e a República no Brasil. Na plateia uma elite local
constituída de proprietários rurais e comerciantes e muitos populares aplaudem
freneticamente a iniciativa. A reviravolta política progride com o hasteamento
da bandeira branca da república e a deposição imediata de toda a burocracia
monárquica cratense. Novos serventuários seriam imediatamente eleitos , o
Capitão-mor da Vila , Pereira Filgueiras, representante maior da monarquia na
região, num primeiro momento, pareceu
aderir ao movimento libertário e seria içado a “Comandante das Tropas”
revolucionárias. Dois dias depois conseguiriam a adesão de Jardim, uma das mais
importantes vilas caririenses na época.
O sonho
pioneiro e premonitório da República do Crato durou, exatamente, oito dias. O
governo central retomou as rédeas do poder político com a ajuda das elites
comerciais e feudais num Ceará de forte viés lusitano. A bandeira da República
foi defenestrada e rasgada. Os revoltosos foram detidos entre eles: José Martiniano ( o seminarista revolucionário
), seus irmãos Tristão e Pe José Carlos. Junto , a primeira heroína e presa política brasileira
, a matrona dos Alencares : D. Bárbara. Eles permaneceriam detidos,
precariamente, em prisões pútridas e
fétidas em Fortaleza, Recife e Salvador.
Por um mero acaso, escapariam da pena de morte e seriam liberados, quatro anos depois, por
conta de ordens da Corte, após uma Anistia Geral que se seguiu à Revolução Liberal do Porto.
Na última
quarta feira, dois séculos depois, um ator subiu ao altar da Sé e refez o ato e
o discurso históricos. A pequena plateia , após a missa, deve ter se
perguntado, já sem a emoção passada:
que legado deixou a fugaz
República do Crato ? Aparentemente, resumiu-se
tudo a um gesto tresloucado e inglório. A partir daquele momento, começamos a computar baixas. O Nordeste foi,
pouco a pouco, perdendo sua força política e econômica no cenário brasileiro,
vendo a gangorra guinar para o sul e
sudeste . O interior do Ceará, então o apogeu da província, foi paulatinamente percebendo sua influência esvair-se para Capital. E o
Crato , depois do segundo quartel dos Novecentos, observaria, atônito, seu
poderio mercantil e político obnubilar-se no Cariri. O movimento seminal
encetado em Pernambuco, no entanto, de tão curta sobrevivência, fincou ideias
iluministas que redundariam logo depois na Independência do Brasil, embora o
sonho republicano ainda tivesse hibernado por mais de setenta anos.
Acredito que
o mais importante testamento deixado pelos revolucionários de 1817 tenha sido a
coragem e a determinação de lutar contra as forças opressoras, mesmo colocando
o pescoço no laço da forca. No fundo, eles não titubearam em plantar uma árvore
que daria frutos para serem saboreados por futuras gerações. Hoje , quando
novamente a Democracia é colocada em cheque; quando a Escravidão tende a
reaparecer, no baile, fantasiada de
reforma trabalhista; quando o entreguismo governamental põe em risco a
Independência conquistada em 1822; quando a miséria e a fome reaparecem como
plataforma de governo; quando os verbos administrar e afanar já são sinônimos;
o ideário e a coragem de Bárbara, José Martiniano, Pe Carlos José e Tristão ,
mais que nunca parecem exemplares e atuais. O Altar da Pátria aguarda ansioso
um outro três de maio.
Crato, 05/05/17
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