sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Krakatoa

 


E
rvínio  Barranquilia chegara como mascate em Matozinho e, depois, de muitas indas e vindas por tudo quanto é de brenha , um dia, depois de tanto nomadismo, resolveu sedentarizar-se. A decisão veio como uma imperiosidade física: já não tinha a força e a adrenalina dos tempos juvenis. Por outro lado, o fixar-se num pequeno comércio de confecções, trouxe-lhe um inconveniente de ordem emocional. Acostumado à mudança de paisagem, aos muitos encontros, conversas e relacionamentos, a diversidade de pessoas e culturas, ficar preso como um mourão, em Matozinho, lhe trouxe uma certa capionguice. Já era sessentão, nunca tivera família estabelecida, levara sempre aquele destino de marinheiro: um amor em cada porto, um adeus a cada manhã. Entendeu, rápido, que ao deixar de ser ave de arribação, precisava construir o ninho com todos os seus detalhes e ingredientes. Carecia, também, de uma mulher com quem dividir os trabalhos domésticos, as angústias e um restinho de prazeres que ainda restassem no fundo da tiborna da vida. Pensou na possibilidade de uma companheira bem mais jovem, seguindo o preceito: pra cavalo velho, forragem nova ! As primeiras incursões nesta seara, no entanto, o fizeram desistir. As meninas falavam língua diferente, tinham anseios e aspirações outras, traziam um currículo de muitas horas de voo rasante em alcovas e, também, ele chegou à conclusão que seria perigoso demais colocar gasolina de avião em motor de  Gordini. Bateria a biela. Depois de perambular, como um caçador com soca-soca à mão, por mais de dois anos, deu com D. Aneilde Cardoso, uma viúva aposentada, sem filhos como ele,  e que já tinha caído a postura.

                        Ervínio tomou algumas informações sobre a pretendida. Havia um consenso: Dona Naná era séria, trabalhadora e tinha fama de ser sistemática, vezes ríspida e volta seca. O primeiro marido tinha sido um dos mais famosos barrigas-brancas de Matozinho.  Pra se ter uma ideia, disseram-lhe alguns amigos, ela o obrigou a ser cantor no coral da igreja de Padre Arcelino ! Aos domingos, enquanto a corriola  conversava em rodas na pracinha e nas mesas de bar, lá estava Avelino, com a opa do Santíssimo cantando na missa das 10, com voz de soprano lírico, a todos pulmões: “Segura na mão de Deus...”

                        Botando os pesos na balança, entre o aforismo das meninas e a brabeza da viúva,  Ervívio optou pelas algemas de Aneilde. Resolveu, então, sem mais delongas, aceirar sua pretendida. Sob pretexto de lhe mostrar umas últimas novidades de confecções que tinham chegando, segundo ele, de Shangai, capital da França, fez-lhe uma visita. E foi entre uma seda e uma cambraia de linho que Ervínio rasgou sua proposta.

                                    --- Seu Ervínio, esta seda verde está muito bonita! Quanto custa o metro dela ? É enfestada?

                                    --- D. Naná, essa seda é um presente da casa para a senhora. Sob uma condição !

                                    --- Qual, seu Ervínio, qual ?

                                    --- Desde que a senhora case comigo !

                        Naná deu um supapo danado, como se tivesse recebido notícia de queda de avião. Qual o quê ? O que você está pensando ? Me respeite seu galego !  Não sou uma de suas catraias , não ! E tangeu um Ervínio desapontado,  dali, sem pestanejar. Com os dias, no entanto, seja porque a seda verdinha era muito vistosa, seja porque Naná sentiu-se desejada e ainda capaz de acender fogueiras com suas centelhas que já imaginava extintas, ela reconsiderou. Mandou-lhe um recado que ele voltasse com os panos e, certamente, com os planos. Dois meses depois estavam no altar. Na lua de mel, um Ervínio forjado nos amores livres dos cabarés, descobriu uma Naná magmática nos dias normais, mas que se desfazia em lavas incandescentes debaixo dos lençóis. As noites se tornaram tórridas e ardentes como os outubros dos Inhamuns. Cedinho, uma Naná radiante, cantarolava Cisne Branco como se estivesse em paradade 7 de setembro.  E, à beira do fogão,  ao virar as tapiocas, elas davam cinco mortais antes de cair novamente na frigideira.  Vai ver, pensou um Ervínio matreiro,  Avelino só afinava bem na igreja ! Foram felizes, apesar de todas as insinuações dos amigos e vizinhos.  Ervínio foi até dispensado de  soltar sua voz de taboca rachada no coral do padre Arcelino. E Naná , estranhamente, abrandou o temperamento, tornou-se carinhosa, meiga, perdeu aquela acidez de cansanção. A rocha se liquefez  em lava após a erupção do Krakatoa.

Crato, 28/01/22

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