Esses são tempos, amigos, em que a Utopia foi substituída pela Distopia. Eduardo Galeano dizia que a Utopia tinha a função de nunca nos fazer parar. Como a cenoura que se dependura na vara diante do cavalo. Estes, no entanto, são tempos em que paralisados, apenas observamos, tacitamente, o teatro de horrores ao nosso redor. O massacre de um negro no Rio que cometeu o crime hediondo de reivindicar seu salário de trabalhador informal em um quiosque. Vítimas de inundações, no sudeste do país imputados de culpados por sua tragédia por não terem “visão de futuro”, eles a quem não é dado nem o direito de vislumbrar saídas no presente. A Ômicron sendo recebida com salvas e boas vindas pelo governo brasileiro. Desmatamento recorde, índios caçados com bichos como no Século XVI. Casais agora não mais criam filhos, mas pets. Qualquer poodle de madame vale, na atual bolsa de valores da sociedade de consumo, milhões de vezes mais de qualquer menino de favela. E o país reiteradamente dividido entre pau-de-araras e bacanas, onde as pessoas são classificadas e rotuladas pela cor da pele, pela conta bancária, pela geografia de origem. No Brasil, claro, esta distopia é bem mais aguda e visível, mas , basta reparar direitinho para se perceber que ela é uma outra pandemia, bem mais antiga e muito mais difícil de se combater.
No último dia 19 de janeiro, faleceu em Paris o fotógrafo suíço René Robert, de 85 anos. Ele era reconhecido, mundialmente, por fotografar astros da Música Flamenca espanhola. Entrado na oitava década , a partida de Robert nem causaria maior furor na imprensa e, certamente, estaria reservada a um pé de página do Le Monde, não fosse pela estranha Causa Mortis que poderia está estampada na sua Certidão de Óbito: Indiferença. René, numa das suas caminhadas, em pleno inverno europeu , sentiu tonturas e caiu em uma rua movimentada próximo à Praça da República na capital francesa. O local, próximo ao bairro judeu do Marais, é movimentado, badalado, apinhado de cafés e restaurantes e de uma chusma grande de turistas. A queda aconteceu por volta das 21 h e Robert ali permaneceu, sem que ninguém o ajudasse, sem que nenhum transeunte dele se aproximasse para perguntar se necessitava de ajuda, sem que um cristão ligasse para a polícia ou para uma emergência. Por volta das 06 h do dia seguinte, um morador em situação de rua ( pasmem vocês !) chamou o socorro. Robert foi levado ao hospital, mas ali já chegou sem vida por conta de Hipotermia. E o caso do fotógrafo , que teve grande repercussão mundial, por conta do seu prestígio como artista, é apenas a ponta do iceberg. Segundo associações francesas que prestam assistência a Sem-Tetos, na França, mais de seiscentos miseráveis morrem anualmente, nas ruas , de indiferença, como aconteceu com o René. E é sempre bom lembrar que no Brasil em torno de 250.000 pessoas vivem ao relento, só em São Paulo residem, atualmente, em praças, marquises e abaixo de viadutos, mais de 30.000 viventes. Certamente, como o próprio governo avalia, são incontáveis pessoas sem visão de futuro e que deviam poderiam morando em mansões no Morumbi e na avenida Atlântida.
O caso de René é um emblema dos tempos distópicos em que vivemos ou sobrevivemos. Todos , como astronautas, dentro de suas cápsulas aparentemente indevassáveis. Ligamo-nos apenas eletronicamente com as outras pessoas, os filamentos de humanidade se esgarçaram. E é a frieza extrema, chamada de hipotermia, que matou Robert, que invadiu a mente e coração dos homens e mulheres e que nos levará ao extermínio pela mesma doença : a Hipotermia.
Crato, 04/02/22
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