Sinuca de bico. Difícil transitar em areia movediça, sem o
constante risco de desaparecer no limbo. Albertino pensava naquela saia justa
em que vivia metido nos últimos meses, sem perceber qualquer fresta no fim do
corredor. Via-se numa encruzilhada em que todos os caminhos possíveis pareciam
de alguma maneira obstruídos: o da esquerda por uma árvore tombada; o da
direita com um enxame de abelhas oropa; o da frente atapetado de serpentes; o
de trás desembocando num abismo. Pensava nisso, enquanto se encaminhava para
casa, em meio de expediente, a chamado urgente do irmão Manoel. Nos últimos
tempos os sobressaltos se sucediam.
Mente
anuviada, lembrou, de relance, do passado , quando as coisas pareciam mais
simples e a vida inundava-se mais de fragrâncias de piqueniques do que de trovoadas. A mão trêmula
girou a chave da ignição do carro
em meio à turbulência de pensamentos e reflexões. Manoel , pensou com seus atavios, fizera-se
sempre o atleta da família. Lépido, fagueiro, encarou os esportes mais radicais com incríveis bravura e destemor. Atapetara os móveis da
casa de troféus: body jamping, windsurf, parapente, asa delta. Classificara-se
, inclusive, recentemente, como atleta olímpico numa modalidade pouco comum : o
wingsuit. Com um traje especial, Manoel refizera o sonho de Ícaro, sobrevoara
vales e montanhas, contornando escarpas pontiagudas de picos e paredões, com
manobras ágeis e certeiras. Impossível imaginar que o grave acidente que terminou por lhe tolher os
voos futuros viria de um simples
tropeção na escada de casa. De repente, aquela mudança
súbita, como se a intensidade que Manoel imprimira à vida tivesse sido uma
compensação da paralisia que em breve tingiria seus dias. Como engolir aquela
sentença peremptória: até os fins de
seus diasele estaria fadado a mover apenas o braço direito, ficaria dependente
de cuidados mínimos de higiene, mobilidade e sobrevivência.
Albertino,
enquanto dirigia o carro, maquinalmente, meio atabalhoado, ia recordando
flashes da tragédia que se abatera sobre a família. De início, Manoel
manteve-se impávido e esperançoso, mesmo com a sentença sinistra. Talvez porque
lhe foi passada meio truncada pelo neurologista, deixando antever ainda a
possibilidade de algum lume em meio à cerração. Com o passar dos dias, porém, a
bruma espessa invadiu lhe a alma. Manoel manteve-se sorumbático e revoltado. Depois calou, monossilabou-se.
Albertino procurou novamente o médico, a pedido da mãe e deixou transparecer
suas preocupações. O profissional , experiente, pediu aos familiares que
tirassem, sorrateiramente, os remédios do alcance do paciente. Prescrevera
muitos medicamentos controlados e temia que, no desespero, Manoel fizesse um
gesto tresloucado e procurasse abreviar o destino tenebroso a que estava
condenado. Assim o fizeram e nos primeiros dias, aparentemente, ele não deu
pela mudança, continuou silente, aceitando a medicação que lhe entregavam, sem
estrebuchar. Albertino, assim, não conseguia prever a razão do chamamento
súbito feito pelo irmão. Estacionou o velho Opala/92 defronte da casa e entrou
um tanto sobressaltado.
Manoel , ao
vê-lo, deitado na cama que tinham
alugado do hospital, falou-lhe que queria uma conversa particular. Aparentava
calma, estranhamente parecia que tinham se dissipado as nuvens carregadas dos
dias anteriores. Albertino pediu à mãe que os deixasse a sós por alguns
instantes fechou a porta do quarto. Ele
então olhou-o sereno e explicou ao irmão todo seu dissabor. Não havia justiça
naquilo que tinham feito com ele, afastando-o dos fármacos. Disse ser um
condenado às galés perpétuas pelo destino. Sabia : eles imantavam-se das
melhores intenções, mas que ninguém nesse mundo carregava o direito sagrado de
tirar das suas mãos a única possibilidade de aliviar seu sofrimento. Sabia-os
religiosos e , por isso mesmo, temerosos de uma saída drástica pela porta
lateral da vida e a possibilidade de uma outra condenação na eternidade, mas ,
a seu ver, se existisse uma força superior uma tragédia daquela seria evitada e
uma decisão sua, por mais extrema que fosse,
seria, certamente, compreendida. Olhando profundamente nos olhos de Albertino, Manoel pediu-lhe para que não
fechasse a única porta nesta vida que
ainda lhe permanecia um pouco entreaberta.
Albertino
abraçou longamente o irmão, banhado em lágrimas. Sem pronunciar uma palavra,
pegou os vidros de remédios que repousavam em cima da cômoda e os colocou ao
alcance da mão direita de Manoel. Ao sair convenceu a mãe que falara com o
médico e ele confirmara que era melhor deixar o próprio paciente controlar sua
medicação, naquela fase do tratamento.
Albertino
retornou ao trabalho aflito mas
aliviado. À noite , como um milagre, de repente Manoel levantou-se do
leito e vestiu sua roupa de wingsuit. Saltou pela janela e voou alto. Lá
embaixo a cidade estava iluminada por uma infinidade de vagalumes. Um vento
doce aos poucos lhe refrescou o corpo. A
lua brilhava no céu como uma promessa.
Crato, 18/10/19
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