Onevaldo
Castriciano era um jumento de lote.
Cabra de uma virilidade invejável, desses de fazer inveja a galo de briga. Fogoso,
lépido, espalhou rebentos pelas redondezas de Matozinho com um furor quase bíblico.
Lia apenas os versículos do “Crescei e Multiplicai”. Em tempos ainda livres da pensão alimentícia e
dos testes de paternidade, Onevaldo se espalhou como pinto no monturo. Um dia,
porém, já adentrado na meia idade, enrabichou-se por Adeilde, uma mocinha pobre de recursos mas
rica de fundos. Onevaldo acerou, jogou o landuá de malha fina, mas Adeilde
resistiu, fez-se de difícil e desinteressada, escapou das laçadas do
pretendente, até porque sabia de cor os detalhes da sua folha corrida. As
investidas sem efeito de Onevaldo terminaram por leva-lo às fronteiras do
desespero. Lançou, então, aquela que parecia ser sua última cartada, procurou
os pais de Adeilde e propôs um casamento. No primeiro momento, ela manteve-se
intransigente. A diferença de idade era muito grande e a mocinha já tinha um
namorico com Jobertino do Pé-de-Bode, um músico da sua idade e que andava
animando sambas nos pés de serra de Matozinho. Os pais de Adeilde, no entanto,
fizeram a sua parte: mostraram à filha a oportunidade de ascensão na vida, já
que Onevaldo parecia um sagui com cólica menstrual , mas tinha um comerciozinho
na vila e umas nesgas de terra e, ao menos, na bitola e na trena de Matozinho
era um sujeito pra lá de remediado. O certo é que o pragmatismo terminou por
vencer o sentimento: Castriciano e Adeilde
subiram ao altar.
Depois de
trocarem as alianças, o antigo jumento de lote, consertou-se. Onevaldo, diziam
os amigos, virou um ferrolho: sempre entrava no mesmo buraco. A virilidade do
homem, porém, apenas adquiriu uma exclusividade. O casal era diarista, chovesse
ou fizesse sol, morresse parente ou doença atacasse, o poço estivesse cheio ou
rios vermelhos fluíssem, não tinha
desculpa: todo dia era dia de índio. E a
frequência milimétrica das atividades de alcova terminou por medrar uma récua
de filhos, na regularidade de quase um a cada ano: vinte e um caboclinhos, até
um dia quando Adeilde , por fim, viu cair a postura.
No princípio,
o fogo na cama de vara trouxe uma
alegria incontida à noiva. Contava os feitos às amigas, muitas delas
esvaindo-se de inveja, e agradecia aos
céus pela pujança do marido, pelo vigor e, também, a certeza de que incendiando
as noites em casa, não tinha condições físicas de acender outras coivaras. O
tempo, no entanto, fez com que o que parecia vantagem, aos pouco se fosse
transformando em suplício. Depois da menopausa, o vigor e a vontade de Adeilde
já não eram os mesmos. Filhos e netos circulando na casa que ficou pequena. Começaram a aparecer os reumatismos, as
securas, o apocalipse da geografia corporal, as preocupações. Castriciano, no
entanto, parecia envernizado. Não queria
saber de desculpa, de conversa, de queixas, todo dia: pau na moleira. Já perto dos oitenta,
parecia o mesmo jovem que D. Adeilde conhecera nos tempos do cerca-lourenço. Mesmo quando ela precisou tratar um câncer que
lhe tomou parte do pescoço e que a fazia aparecer sempre com um cachecol
amarrado no gogó, fazendo tratamento com drogas que ela tinha a certeza tinham
sido prescritas pelo satanás, nem assim, queixava-se ela às amigas, nem assim
Onevaldo largava do pé.
Um dia, como
era previsível, o garanhão sucumbiu.
Saíra para Matozinho, fazer umas compras, e, sabe-se lá como, caiu do cavalo e
deu com a cabeça num tronco de timbaúba. A cidade parecia que ia descer também
à cova com Castriciano. Todos lamentaram a queda daquela madeira de lei, um varão
bíblico, orgulho da masculinidade da vila. Adeilde, passado o choque, viu-se
tocando as migalhas da vida que lhe sobrara. Deixava transparecer um certo
alívio, agora que haviam interrompido seu destino de Sísifo. Mesmo assim,
contava às eternas amigas, que não raro acordava à noite, num pesadelo
terrível, com a alma de Castriciano bolinando-a e querendo fazer escandelo.
Há alguns
dias, chegou a vez de Adeilde, por fim, ajustar as contas com o criador. O
tumor do pescoço arrebentou novamente e, depois de dias de sangramento, dor e
agruras, arrodeada de filhos e netos, ela
foi juntar-se a Onevaldo, nas paragens celestes. Aleluia, o almejado descanso
eterno -- pensaram as amigas, próximo ao caixão.
No dia
seguinte, as colegas de tantos e tantos anos acompanharam Adeilde à sua
derradeira morada. Lá os coveiros tiraram a tampa do túmulo da família. Era
pequeno , meio apertado e, dentro, já estava o féretro de Castriciano que ali
chegara cinco anos antes. Rápido os profissionais notaram que não cabiam os
dois caixões no mesmo túmulo. O espaço interior era exíguo. Tiraram, então,
aquele envelope onde estava o marido e colocaram o esquife da nova ocupante da casa: Adeilde.
Eliminaram, então, os restos do esquife de Onevaldo e , cuidadosamente, puseram
os seus ossos por cima do caixão de Adeilde: única maneira de caber os dois
restos mortais no mesmo espaço. Em meio a choro e ranger de dentes de muitos
filhos, netos e bisnetos, os coveiros fecharam o jazigo. O casal estava, novamente,
reunido agora pera sempre.
As amigas de
Adeilde, enquanto enxugavam as lágrimas, usaram também os lenços para conter os
risos, pensando baixinho, enquanto viam colocar os ossos de Onevaldo por cima
do caixão da colega.
--- Mas
menino, assim na terra como no céu, já dizia o Pai Nosso ! Descanso eterno que
nada ! Castriciano já tá por cima, de
novo ! O Sem-vergonha não deixa a mania !
11/10/19
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