SAUDAÇÃO A HUBERTO
CABRAL
Parece que tudo passa
para que recomece
desde o princípio, como se fosse novo, ou se observe
sem levar em conta algo que já existiu
e tampouco aquilo que virá, infindável.
Uma grande destruição, como se tudo se apagasse atrás de nós
a história, as lembranças, os valores existentes
e as imagens que nos governavam.
Alguém nos confidencia: rápido o passado se afasta de nós,
você vê como ele se transmuda, depois põe-se além do horizonte
e talvez nem mais exista, renuncia a tudo que é inútil,
se ainda recordações você preserva.
Mas, se a história passa
(ela própria é narrativa sobre a transitoriedade), algo permanece:
de cada conceito antigo uma ou outra raiz
e os rituais do culto de outrora límpidos em nós,
o diálogo entre nós e os filosofemas anteriores é possível.
No meio da charada contemporânea emerge o algarismo original.
desde o princípio, como se fosse novo, ou se observe
sem levar em conta algo que já existiu
e tampouco aquilo que virá, infindável.
Uma grande destruição, como se tudo se apagasse atrás de nós
a história, as lembranças, os valores existentes
e as imagens que nos governavam.
Alguém nos confidencia: rápido o passado se afasta de nós,
você vê como ele se transmuda, depois põe-se além do horizonte
e talvez nem mais exista, renuncia a tudo que é inútil,
se ainda recordações você preserva.
Mas, se a história passa
(ela própria é narrativa sobre a transitoriedade), algo permanece:
de cada conceito antigo uma ou outra raiz
e os rituais do culto de outrora límpidos em nós,
o diálogo entre nós e os filosofemas anteriores é possível.
No meio da charada contemporânea emerge o algarismo original.
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Seremos capazes de
devolver ao espírito cada centelha,
se agora testemunharmos que “tudo vive”:
o passado dentro do futuro, a sabedoria na loucura,
o conhecimento nas trevas,
e que tudo aquilo que na vida é rubro, vermelho escuro,
branco raiado de paixão, jamais se acinzente.
se agora testemunharmos que “tudo vive”:
o passado dentro do futuro, a sabedoria na loucura,
o conhecimento nas trevas,
e que tudo aquilo que na vida é rubro, vermelho escuro,
branco raiado de paixão, jamais se acinzente.
Miodrag Pávlovitch (1928-2014)
Tradução: Aleksandar Jovanovié
Eis-nos todos , neste dia festivo,
tepidamente abrigados pelos umbrais da
Universidade Regional do Cariri , no doce mister de ungir, com o dignificante
Título de Doutor, uma das mentes mais privilegiadas nascidas ao sopé da Chapada
do Araripe. A honraria parece emergir em mão dupla, quando percebemos, com
clareza, que a Academia , desde o seu nascedouro, pôs-se a imantar todo o sul
cearense de ciência e sabedoria, mas, principalmente, trouxe consigo a
possibilidade única e redentora de
ampliar os horizontes humanos, dando instrumentos a pobres e desafortunados,
apontando o único Shangrilá possível para o Brasil : A Educação. Um país ainda
embebido nas distorções do Colonialismo e que , estranhamente, volta a
sonhar com pesadelos que se tinham por
superados: a Escravidão, a perseguição
de movimentos libertários e sociais, a chacina de minorias, a censura, a justiça com exoftalmia, o ar
rarefeito e plúmbeo. A Universidade, antídoto de tantos desses males, o reverso
desta moeda, sofre o garrotilho vil e previsível. Professores são
achincalhados, patrulhados, submetidos a salários aviltantes, impelidos a dar
ordens unidas ao invés de aulas. O
Conhecimento será sempre revolucionário, a Academia faz-se o
inimigo natural dos déspotas. E aqui estará ela sempre a apontar, alheia aos
sátrapas, aos tiranos e aprendizes de verdugos que a Educação é, sim, o
verdadeiro Golden Shower de que a
Nação necessita.
Tocou-me o coração,
nestes dias, o poema do sérvio Miodrag Pavlovicht, quando a URCA, sem
relutância e talvez temerariamente, me pôs nas mãos a difícil missão de saudar
o nosso agraciado, nesta solenidade. Pus-me a refletir sobre a postura
derradeira de alguns personagens da história. O que teria levado o Soldado de
Pompéia a manter seu posto, inflexivelmente, mesmo percebendo a chegada
inevitável da lava do Vesúvio ? Que
força teria levado tranquilidade ao
último índio Cariri, quando enxotado das suas terras para o litoral, e percebeu a chamada de Tupã e o fim
inevitável da sua raça ? Talvez ambos tenham sentido que era preciso que tudo
terminasse para que logo depois tivesse seu recomeço. Ali testemunhavam a
vitalidade a cercá-los e a extinção como
simples continuação do mesmo ciclo, uma
mera mudança vital de estação. O pêndulo
da história transita entre memória e esquecimento. Vezes os pinos de luz
incidem em detalhes de um cenário, vezes em outro, ao bel prazer dos
iluminadores de plantão, mas a história tem seus próprios ciclos periódicos,
seus movimentos de rotação-translação. Há, no entanto, visionários, pessoas que
entendem a importância inequívoca destes ciclos e fazem-se testemunhas e
repórteres desta gangorra vital. Têm como profissão de fé o manter acesa esta centelha, cientes de que
tudo vive, mas que é preciso, cuidadosamente -- como um lírio que se asperge
toda manhã -- como disse nosso Miodrag: não deixar que se acinzente tudo que é rubro, vermelho escuro, branco
raiado de paixão.
Tudo que cessa é morte, e a morte é nossa
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
Ricardo Reis, in "Odes"
Se é para nós que cessa. Aquele arbusto
Fenece, e vai com ele
Parte da minha vida.
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
Ricardo Reis, in "Odes"
Hoje, a Academia, em festa, abre portas e janelas para
reverenciar uma destas figuras icônicas, um verdadeiro totem da Memória
caririense. Huberto Cabral dedicou a
maior parte dos seus pródigos oitenta e dois anos a acompanhar, registrar e
catalogar as histórias oficial e privada do sul cearense. Poderia,
simplesmente, ter aceitado, candidamente, o cair das folhas do outono da
existência. Refestelar-se-ia na cadeira de balanço , envergando o pijama de
bolinha como farda, ao chegar àquela idade tão bem definida por Mário Quintana:
“Antes, todos os caminhos iam.
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”
Agora todos os caminhos vêm
A casa é acolhedora, os livros poucos.
E eu mesmo preparo o chá para os fantasmas”
Tomou para
si , no entanto, os anseios de um outro poeta visionário, o irlandês William
Buttler Yeats, no “Velejando para Bizâncio”:
“’Um velho é apenas
coisa irrelevante.
Trapos sobre um bastão ele é na essência,
A menos que a alma aplauda e alegre e cante
Acima dos farrapos da existência”
Trapos sobre um bastão ele é na essência,
A menos que a alma aplauda e alegre e cante
Acima dos farrapos da existência”
Simplesmente,
Cabral buscou o galho mais alto da árvore da vida e pôs-se a entoar seu canto,
enquanto o palácio ia ruindo à sua volta. E fê-lo como uma epifania, sem esperar qualquer
reconhecimento ou vantagem quer política, quer financeira. Prestou constante
assessoria à maior parte das instituições públicas e privadas da cidade do Crato, nos últimos sessenta anos.
Negou-se, peremptoriamente, a receber cargos e comissões. Manteve-se presidente
vitalício do seu próprio partido político: PCG - Partido do Crato Grande. Cônscio
da história gloriosa da Vila de Frei Carlos, continua lutando diuturnamente
para que o nosso passado heroico tenha a força de iluminar e colorir o presente meio dégradé e opaco.
A casa era por aqui…
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa…
– Mas o menino ainda existe.
Onde? Procuro-a e não acho.
Ouço uma voz que esqueci:
É a voz deste mesmo riacho.
Ah quanto tempo passou!
(Foram mais de cinquenta anos.)
Tantos que a morte levou!
(E a vida… nos desenganos…)
A usura fez tábua rasa
Da velha chácara triste:
Não existe mais a casa…
– Mas o menino ainda existe.
Manoel Bandeira
Cabral foi figura onipresente em todos grandes acontecimentos do Crato,
nos últimos sessenta anos. Fez-se cerimonialista eterno dos nossos maiores
eventos : Todas as Exposições Agropecuárias; a inauguração da Amplificadora
Cratense; a fundação da Maternidade Dr. Teles e das Rádios Educadora e
Araripe; a abertura do Jornal “A Ação”;
a instalação do Aeroporto Nossa Senhora de Fátima e do Cine Educadora; a
chegada da imagem peregrina de Nossa Senhora da Penha; a alternância dos bispos
diocesanos, o advento do Museu Vicente Leite. Fez-se ainda um
combatente no front da guerra pela implantação da Universidade Regional do
Cariri, junto com as irmãs Sara e Irene . Nos incontáveis episódios de
sabotagem política contra o município, esteve eternamente vigilante e pronto a
pôr os tanques de guerra em campo pela defesa dos nossos pleitos. Como
jornalista, tornou-se o repórter mais importante da história do Cariri e também
o mais longevo, acompanhando o desenvolvimento do Futebol cratense, dos nossos
carnavais mais tradicionais, das nossas festividades mais populares. Entrevistou os ex-presidentes
Castello Branco, Juscelino Kubitschek, Geisel e Sarney; o Papa João Paulo II; a
escritora Rachel de Queiroz; inúmeros artistas como Sérvulo Esmeraldo, Bruno
Pedrosa, Orlando Silva, Gilberto Alves, Nélson Gonçalves, Gilberto Milfont,
Vanderley Cardoso, Luiz Gonzaga; além de
incontáveis ministros e praticamente todos os governadores cearenses nas
últimas seis décadas. Deu assessoria e consultoria por mais de um quartel de século, de forma
sempre voluntária, inclusive negando-se, terminantemente, a receber quaisquer
tipos de subsídios, a nossas mais importantes instituições:
Instituto Cultural do Cariri, Sociedade de Cultura Artística do Crato, Diocese
do Crato, Câmara Legislativa, Clube de Diretores Lojistas, Crato Tênis Clube,
Clubes de Serviços , Associação Comercial de Crato, Tiro de Guerra, Colégios
Pequeno Príncipe e Diocesano , CEJA/Crato, CREDE 18, Rádio Educadora, Jornal “A
Ação”, Rádio Araripe.
Huberto, dizem os
amigos, tem o HD do Crato, meticulosamente registra uma agenda infindável das
nossas datas comemorativas. Se o Brasil foi descoberto por Pedro Álvares, o
Crato também tem o seu descobridor, coincidentemente também um outro Cabral. Se
devemos a Irineu Nogueira Pinheiro o registro de nossas Efemérides até 1954, o ano da sua
partida para o voo celestial, a partir daí as Efemérides Cratenses estão
escritas na memória prodigiosa do nosso mais importante jornalista que sequer
deu-se ao trabalho de firmá-las em livro.
No
galpão guardamos as enxadas enferrujadas.
E
lá elas esperam a morte, como os velhos nos asilos.
Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.
Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.
Esta foice não está mais afiada. Este ancinho
já não sabe limpar o cisco do pomar.
Mas não nos desfazemos de nada — é a nossa lei.
No depósito escuro onde repousam escorpiões
está até a chave que não abre nenhuma porta.
Ledo Ivo
As outorgas de
títulos de Doutor Honoris Causa
carregam consigo o risco potencial de polêmicas próprio das Academias, onde as
opiniões estão sempre em efervescência e a colisão entre elas, no fundo,
consubstancia a própria essência viva da Universidade. Este clima, no entanto,
não contagia este momento único, o nosso homenageado, criador de quase todas as
medalhas honoríficas do município, faz-se, renitentemente , avesso a quaisquer
honrarias que ele sejam dirigidas. Ante
quaisquer iniciativas no sentido de laureá-lo, Cabral fecha-se como Tatu-Bola, fica inacessível como pequi
verde. Acredito, no entanto, que o dia de hoje carrega consigo o gosto do fruto
de há muito desejado; paira nos cratenses uma sensação de Déjá-Vu, como se todos nós, professores, alunos, amigos, estivéssemos presenciando o momento histórico de uma
crônica de há muito anunciada. A revelação de uma profecia que pressentíamos prestes a eclodir, como a pupa saltando do seu
casulo. A Memória são os líquidos fios com que se tecem as frágeis paredes da
fortaleza da história de um povo. O guardião deste templo , como uma criança na
praia, constrói os castelos que em pouco serão lambidos pelas ondas do Tempo.
O palácio está em ruínas...
Dói ver no parque o abandono
Da fonte sem repuxo...
Da fonte sem repuxo...
Ninguém ergue o olhar da
estrada
E sente saudades de si ante aquele
lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
mais bela cortada...
............................................
E sente saudades de si ante aquele
lugar-outono...
Esta paisagem é um manuscrito com a frase
mais bela cortada...
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Há tão pouca gente que ame as
paisagens
que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
auréola negra...
que não existem!...
Saber que continuará a haver o mesmo
mundo amanhã — como nos desalegra!...
Que o meu ouvir o teu silêncio não seja
nuvens que atristem
O teu sorriso, anjo exilado, e o teu tédio,
auréola negra...
Fernando Pessoa (
Mensagem)
Este é o afã frustrante e desapontador do memorialista: escrever com o
giz no quadro negro, enquanto a mão do tempo usa o apagador à medida que as
palavras se vão sucedendo. Vale a pena o
esforço aparentemente inútil e desigual
? Ah ! mas sobre a superfície do quadro
ficarão rabiscos, como uma Pedra da Roseta, escritas rupestres que serão depois
desvendadas pelas futuras gerações. Algumas poucas testemunhas, ainda, terão
gravadas nos olhos as palavras esparsas da lousa, antes do trabalho
esmaecedor das horas. Jorge Luiz Borges
definiu bem esta luta inglória, no seu poema “Fragmentos de um Evangelho
Apócrifo” :
“Nada se edifica sobre a pedra, tudo sobre a areia, mas nosso
dever é edificar como se fosse pedra a areia...”
A Universidade
Regional do Cariri, assim, hoje, não reverencia apenas o maior repórter da sua
história, nosso mais importante memorialista, uma testemunha viva do Cariri nos
últimos sessenta anos. Oficializa-se um grau de Doutor que já lhe tinha sido,
por mérito, outorgado pelos intelectuais
e pela população mais humilde deste Vale
. Temos a sensação clara que o nosso Geopark Araripe acaba de descobrir um fóssil raro de um pterossauro ( o
Hubertossauro cabralis) e, o mais
incrível e surpreendente: ele está vivo e lépido, livre das suas pétreas
amarras, pronto a alçar voo e contar a novas gerações e a outros povos a saga
milenar da sua trajetória.
Onde começo, onde
acabo,
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
se o que está fora está dentro
como num círculo cuja
periferia é o centro?
Estou disperso nas
coisas,
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
nas pessoas, nas gavetas:
de repente encontro ali
partes de mim: risos, vértebras.
Estou desfeito nas nuvens:
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
vejo do alto a cidade
e em cada esquina um menino,
que sou eu mesmo, a chamar-me.
Extraviei-me no tempo.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Onde estarão meus pedaços?
Muito se foi com os amigos
que já não ouvem nem falam.
Estou disperso nos
vivos,
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
em seu corpo, em seu olfato,
onde durmo feito aroma
ou voz que também não fala.
Ah, ser somente o
presente:
esta manhã, esta sala.
esta manhã, esta sala.
Ferreira Gullar
A casa é a mesma, parece até a tapera da Rua das Flores que te acolheu nos
primeiros bulícios ,muitos anos atrás. O menino não mudou muito, é o pirralho malino
de outrora , o guri de Dona Pia e seu Zé
Leite, com algumas cicatrizes e alguns espólios
de guerra. Talvez, por isso mesmo, nem carece gritar “Ô de Casa !” As portas e janelas defenestrem-se , sem
estranheza, para receber neste
momento o filho pródigo, “depois de um
longo e tenebroso inverno” .
“No meio da charada
contemporânea emerge o algarismo original !”
Bem vindo à sua casa,
Dr. Francisco Huberto
Esmeraldo Cabral !
Crato, 08/03/2019
J. Flávio Vieira
J. Flávio Vieira
2 comentários:
Dr José Flavio, dez, cem, ...
para sua saudação a Huberto Cabral. Mas, o agraciado merece todo o rebuscamento nas palavras e na escrita.
Parabéns aos dois!
oBRIGADO PELAS PALAVRAS, lÍDIA
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