quinta-feira, 28 de março de 2019

Cabeça de Porco



“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!

 porque sois semelhantes aos sepulcros caiados,

que por fora realmente parecem formosos, mas por dentro

 estão cheios de ossos e de toda imundícia.
Assim também vós exteriormente pareceis

 justos aos homens, mas por dentro

estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.”

Mateus 23:27,28


                                               Era o dia 26 de janeiro de 1893, no Rio de Janeiro, há exatos cento e vinte e seis anos passados. Próximo à Rua Barão de São Felix, em pleno centro da Capital Federal, à época, estava instalado o mais importante Cortiço da cidade, chamado de “Cabeça de Porco”. Ali existiam centenas de casinhas e abrigou, no seu período áureo, mais de quatro mil pessoas, em geral trabalhadores do comércio, ambulantes, escravos forros ou fugidos. Naquele finalzinho dos Novecentos , calcula-se, deviam habitar, no “Cabeça de Porco”, dois milhares de almas. De há muito os governos vinham pressionando os proprietários para desocuparem o local, desejavam ampliar e modernizar e o centro do Rio , tornando-o uma espécie de Paris Tropical. Justificavam a necessidade da desocupação em nome do higienismo: aquele antro, diziam,  era uma verdadeira bomba armada com risco contínuo de fazer explodirem epidemias como Febre Amarela e Cólera. Claro que por trás do discurso médico e sanitário existiam razões econômicas atreladas à especulação imobiliária. O prefeito de plantão naquele 1893, Barata Ribeiro, em conluio com o déspota presidente Floriano Peixoto,  ordenou a invasão  da polícia, e ali esteve presente, com uma chusma de autoridades, observando atentamente a operação policial daquilo que eles chamavam de “velhacouto de desordeiros”. A horda de policiais caiu por sobre os casebres, fazendo com que os pobres moradores corressem desesperados, carregando trapos e filhos. Alguns ainda tentaram resistir mas tiveram que escapar antes que a demolição e as chamas os exterminassem.  Os trabalhos se arrastaram por toda a noite e, ao amanhecer, já não mais existia o “Cabeça de Porco”. Que fizeram os moradores esfarrapados, desvalidos, expulsos do pouco paraíso que lhes havia sobrado ? Subiram o morro mais próximo e lá, no alto, passaram a olhar a cidade de cima. Em 1897, os soldados egressos da Campanha de Canudos ( onde miseráveis chacinaram seus iguais) ali se estabeleceram com a autorização do governo e passou a ser chamado ( em alusão a um pico idêntico existente em Canudos) de “Morro da Favela”. A imprensa novecentista louvou a ação como de um feito épico o estado foi apresentado como Perseu e o Cabeça de Porco como a Medusa. Este episódio é típico da modalidade de gestão pública que se repetiu durante toda nossa história, sempre de olhos fechados para as diferenças sociais urbanas.
                                   No último sábado, 23 de março, a chamada Favela do Cimento, na Zona Leste de  São Paulo, foi destruída por um incêndio criminoso. Estava prestes a sofrer um despejo numa ação de reintegração de posse. Humildes, velhos, crianças, desempregados e famintos se viram, de repente, no olho da rua. Houve casos de morte.  O que mais chamou a atenção, no entanto, foi o buzinaço de felicidade das pessoas que passavam nos carros , nas proximidades, chamando os agora refavelados de “vagabundos”. Em 2017, o então prefeito João Dória, resolveu numa operação policialesca inócua, acabar com a Cracolândia, transformando um seríssimo problema de Saúde Pública, numa mera questão criminal. À medida que as cidades brasileiras se foram desenvolvendo, passaram a tanger para distante, com asco, suas mazelas, num processo de higienização que se repete nos séculos. Comodamente, preferimos, sempre, esconder nossas moléstias sociais, a enfrentar suas dolorosas causas, até porque , do outro lado espelho, com certeza, a elite brasileira, temente do mea culpa,  encontra refletida a própria face.
                                   Nada mudou nesses cento e vinte e seis anos. O Brasil cresceu, desenvolveu-se economicamente, mas nunca tivemos uma ideia clara de Nação. Parece-nos normalíssimo a madama fazer dieta no Spa chic e a criança morrer de fome nos semáforos das ruas. O “Cabeça de Porco” de ontem é a mesma “Favela do Cimento” de hoje, mais de cem anos passados. Os que morrem e são expulsos do paraíso são sempre os mesmos e os que riem e comemoram nas arquibancadas do país faz parte de um mesmo público: mudam os atores mas o script é o mesmo. O país, que se orgulha como o mais cristão do mundo, tem uma elite que escolhe os preceitos sagrados que deseja esquecer.  Nos domingos, contritos, vão às missas e aos cultos,  ajoelham-se nos confessionários e sabem de cor capítulos e versículos bíblicos. Andam nas ruas, nas suas cabines duplas blindadas,  hermeticamente afastados do planeta real. Seus templos são os shoppings, as academias e os spas.   Nada lhes toca o coração: a miséria alheia, a fome, a doença do próximo, a morte do outro. Tudo isso se resolve com polícia, arma e cassetete. Afinal, a fúria dos deuses para ser aplacada precisa de sacrifícios humanos, não é mesmo ? O sangue dos seus semelhantes agora corre nas platibandas da miséria, como antes encharcavam as pirâmides Incas.  A pretensa burguesia brasileira loteou o céu, fez um condomínio fechado,  e tem cada um a sua mansão garantida. Quando morrerem acreditam que seus sepulcros de mármore ainda assim lhes farão a diferença, quem sabe ,  o pó em que se tornarão será bem mais reluzente.  Cada um dos hipócritas e fariseus tem seu Deus particular, entendem que podem suborná-los como o fazem nas suas relações terrestres ( assim na terra como no céu!) , basta entupi-los de óbolos, de ofertas  e de dízimos. Dormem tranquilos e sonham com um país colossalmente próspero, um mundo sem mendigos  e desafortunados, jardins com rosas sem espinhos e frutos sem caroços, tudo brotando em solo hipócrita e iníquo.

Crato, 26/03/19     
                                  

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