“Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas!
porque sois
semelhantes aos sepulcros caiados,
que por fora realmente parecem formosos, mas por
dentro
estão cheios
de ossos e de toda imundícia.
Assim também vós exteriormente pareceis
Assim também vós exteriormente pareceis
justos aos
homens, mas por dentro
estais cheios de hipocrisia e de iniqüidade.”
Mateus 23:27,28
Mateus 23:27,28
Era o dia 26 de janeiro de 1893, no
Rio de Janeiro, há exatos cento e vinte e seis anos passados. Próximo à Rua Barão
de São Felix, em pleno centro da Capital Federal, à época, estava instalado o
mais importante Cortiço da cidade, chamado de “Cabeça de Porco”. Ali existiam
centenas de casinhas e abrigou, no seu período áureo, mais de quatro mil
pessoas, em geral trabalhadores do comércio, ambulantes, escravos forros ou
fugidos. Naquele finalzinho dos Novecentos , calcula-se, deviam habitar, no
“Cabeça de Porco”, dois milhares de almas. De há muito os governos vinham
pressionando os proprietários para desocuparem o local, desejavam ampliar e
modernizar e o centro do Rio , tornando-o uma espécie de Paris Tropical. Justificavam
a necessidade da desocupação em nome do higienismo: aquele antro, diziam, era uma verdadeira bomba armada com risco
contínuo de fazer explodirem epidemias como Febre Amarela e Cólera. Claro que
por trás do discurso médico e sanitário existiam razões econômicas atreladas à
especulação imobiliária. O prefeito de plantão naquele 1893, Barata Ribeiro, em
conluio com o déspota presidente Floriano Peixoto, ordenou a invasão da polícia, e ali esteve presente, com uma
chusma de autoridades, observando atentamente a operação policial daquilo que
eles chamavam de “velhacouto de desordeiros”. A horda de policiais caiu por
sobre os casebres, fazendo com que os pobres moradores corressem desesperados,
carregando trapos e filhos. Alguns ainda tentaram resistir mas tiveram que
escapar antes que a demolição e as chamas os exterminassem. Os trabalhos se arrastaram por toda a noite e,
ao amanhecer, já não mais existia o “Cabeça de Porco”. Que fizeram os moradores
esfarrapados, desvalidos, expulsos do pouco paraíso que lhes havia sobrado ?
Subiram o morro mais próximo e lá, no alto, passaram a olhar a cidade de cima.
Em 1897, os soldados egressos da Campanha de Canudos ( onde miseráveis
chacinaram seus iguais) ali se estabeleceram com a autorização do governo e passou
a ser chamado ( em alusão a um pico idêntico existente em Canudos) de “Morro da
Favela”. A imprensa novecentista louvou a ação como de um feito épico o estado
foi apresentado como Perseu e o Cabeça de Porco como a Medusa. Este episódio é
típico da modalidade de gestão pública que se repetiu durante toda nossa
história, sempre de olhos fechados para as diferenças sociais urbanas.
No último
sábado, 23 de março, a chamada Favela do Cimento, na Zona Leste de São Paulo, foi destruída por um incêndio criminoso.
Estava prestes a sofrer um despejo numa ação de reintegração de posse.
Humildes, velhos, crianças, desempregados e famintos se viram, de repente, no
olho da rua. Houve casos de morte. O que
mais chamou a atenção, no entanto, foi o buzinaço de felicidade das pessoas que
passavam nos carros , nas proximidades, chamando os agora refavelados de
“vagabundos”. Em 2017, o então prefeito João Dória, resolveu numa operação
policialesca inócua, acabar com a Cracolândia, transformando um seríssimo
problema de Saúde Pública, numa mera questão criminal. À medida que as cidades
brasileiras se foram desenvolvendo, passaram a tanger para distante, com asco,
suas mazelas, num processo de higienização que se repete nos séculos.
Comodamente, preferimos, sempre, esconder nossas moléstias sociais, a enfrentar
suas dolorosas causas, até porque , do outro lado espelho, com certeza, a elite
brasileira, temente do mea culpa, encontra refletida a própria face.
Nada mudou
nesses cento e vinte e seis anos. O Brasil cresceu, desenvolveu-se
economicamente, mas nunca tivemos uma ideia clara de Nação. Parece-nos
normalíssimo a madama fazer dieta no Spa chic e a criança morrer de fome nos
semáforos das ruas. O “Cabeça de Porco” de ontem é a mesma “Favela do Cimento” de
hoje, mais de cem anos passados. Os que morrem e são expulsos do paraíso são
sempre os mesmos e os que riem e comemoram nas arquibancadas do país faz parte
de um mesmo público: mudam os atores mas o script é o mesmo. O país, que se
orgulha como o mais cristão do mundo, tem uma elite que escolhe os preceitos
sagrados que deseja esquecer. Nos
domingos, contritos, vão às missas e aos cultos, ajoelham-se nos confessionários e sabem de
cor capítulos e versículos bíblicos. Andam nas ruas, nas suas cabines duplas
blindadas, hermeticamente afastados do
planeta real. Seus templos são os shoppings, as academias e os spas. Nada
lhes toca o coração: a miséria alheia, a fome, a doença do próximo, a morte do
outro. Tudo isso se resolve com polícia, arma e cassetete. Afinal, a fúria dos
deuses para ser aplacada precisa de sacrifícios humanos, não é mesmo ? O sangue
dos seus semelhantes agora corre nas platibandas da miséria, como antes encharcavam
as pirâmides Incas. A pretensa burguesia
brasileira loteou o céu, fez um condomínio fechado, e tem cada um a sua mansão garantida. Quando
morrerem acreditam que seus sepulcros de mármore ainda assim lhes farão a
diferença, quem sabe , o pó em que se
tornarão será bem mais reluzente. Cada
um dos hipócritas e fariseus tem seu Deus particular, entendem que podem
suborná-los como o fazem nas suas relações terrestres ( assim na terra como no
céu!) , basta entupi-los de óbolos, de ofertas
e de dízimos. Dormem tranquilos e sonham com um país colossalmente próspero,
um mundo sem mendigos e desafortunados,
jardins com rosas sem espinhos e frutos sem caroços, tudo brotando em solo
hipócrita e iníquo.
Crato, 26/03/19
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