sábado, 20 de outubro de 2018

Fogos


J. FLÁVIO VIEIRA

                                               A corrida de obstáculos começa cedinho, mal a cidade tira a remela dos olhos. Carros e  carros amontoam-se pelas vias obstruídas, logo cedinho,  como se previssem  o enfarte futuro dos ocupantes  dos bólidos. Homens de cara amarrada , manietados no trânsito caótico, desesperam-se,  vendo-se escoar pela ampulheta a substância irretornável : o tempo. Motos, em ziguezagues, costuram as vias entulhadas de veículos, num estranho crochê matinal. Os cabine-dupla apresentam um ar de superioridade, quase que nobiliárquico, engolindo os pequenos espaços que vão surgindo, como se num PAC-MAN gigantesco,  na clara convicção de que existe um Código de Trânsito específico para a realeza. Meninos sonolentos, nos bancos de trás, não parecem demonstrar preocupação maior com o atraso na sala de aula: bocejam ininterruptamente. Os carros , hermetizados  pelos insulfims  e  ar-condicionado,  aparentam a tranquilidade de quem se encontra totalmente isolado do mundo que freme do outro lado dos vidros.  Sons ambientes são abafados pelo bate-estaca das buzinas nervosas.  Cada Sísifo carrega consigo seu 13º Trabalho de Hércules do dia: a consulta, a fábrica, o escritório, a escola, o laboratório, a lojinha, o hospital...  Todos , a seu algum modo, revoltados  com a praga um dia lançada  quando as espadas flamejantes nos expulsaram do paraíso para o leste do éden. Adiante , os veículos, em continência, param diante da imposição do sinal vermelho, no cruzamento.
                                   Dois pardais  pousam, obedientemente, sobre os olhos rubros do semáforo,   e saltitam de um lado a outro do curto campo disponível, tilintando como crianças no playground. Enquanto a realidade urra ao derredor,  ensinam lições de alegria e distanciamento. O pássaro fugirá do azáfama. No alto,  dançará  sobranceiro, sobre os fogos, mesmo sob a dura perspectiva da abertura próxima da temporada de caça,  como se as luzes semafóricas fossem apenas os holofotes estonteantes da boate.  A vida rege-se na ciclicidade do verde, do amarelo , do vermelho, comandada por uma longa mão invisível que apaga ou acende aleatoriamente seus sinais.


20/10/18

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