J. FLÁVIO VIEIRA
A corrida de obstáculos começa
cedinho, mal a cidade tira a remela dos olhos. Carros e carros amontoam-se pelas vias obstruídas, logo
cedinho, como se previssem o enfarte futuro dos ocupantes dos bólidos. Homens de cara amarrada ,
manietados no trânsito caótico, desesperam-se, vendo-se escoar pela ampulheta a substância
irretornável : o tempo. Motos, em ziguezagues, costuram as vias entulhadas de
veículos, num estranho crochê matinal. Os cabine-dupla apresentam um ar de
superioridade, quase que nobiliárquico, engolindo os pequenos espaços que vão
surgindo, como se num PAC-MAN gigantesco, na clara convicção de que existe um Código de
Trânsito específico para a realeza. Meninos sonolentos, nos bancos de trás, não
parecem demonstrar preocupação maior com o atraso na sala de aula: bocejam
ininterruptamente. Os carros , hermetizados pelos insulfims e ar-condicionado, aparentam a tranquilidade de quem se encontra
totalmente isolado do mundo que freme do outro lado dos vidros. Sons ambientes são abafados pelo bate-estaca
das buzinas nervosas. Cada Sísifo
carrega consigo seu 13º Trabalho de Hércules do dia: a consulta, a fábrica, o
escritório, a escola, o laboratório, a lojinha, o hospital... Todos , a seu algum modo, revoltados com a praga um dia lançada quando as espadas flamejantes nos expulsaram
do paraíso para o leste do éden. Adiante , os veículos, em continência, param
diante da imposição do sinal vermelho, no cruzamento.
Dois pardais pousam, obedientemente, sobre os olhos rubros
do semáforo, e saltitam de um lado a outro do curto campo
disponível, tilintando como crianças no playground. Enquanto a realidade urra
ao derredor, ensinam lições de alegria e
distanciamento. O pássaro fugirá do azáfama. No alto, dançará sobranceiro, sobre os fogos, mesmo sob a dura
perspectiva da abertura próxima da temporada de caça, como se as luzes semafóricas fossem apenas os
holofotes estonteantes da boate. A vida
rege-se na ciclicidade do verde, do amarelo , do vermelho, comandada por uma
longa mão invisível que apaga ou acende aleatoriamente seus sinais.
20/10/18
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