quinta-feira, 4 de outubro de 2018

A Senda



Toda a invenção é memória. (...)
 Quem nos arranja os materiais é a memória.
As tais coisas de que a gente não fala
e aparecem nos livros,  de maneiras desviadas.”

                                                                                                    António Lobo Antunes

                                                               A história de uma vila, de um bairro, de uma nação não se faz apenas com os fatos épicos que  locupletam os livros didáticos. O sangue das batalhas, as grandes jogadas da política, o heroísmo dos homens da Arte e da Ciência são apenas uma pequena notícia de rodapé na verdadeira odisseia da humanidade. A saga de um povo ou de uma cidade passa pelos pequenos gestos desapercebidos da maioria dos mortais, do dissipável sabor das nossas  mais simples relações cotidianas, do fragor mudo da mãe solteira que batalha pela sobrevivência da ninhada, do heroísmo imperceptível e cotidiano da grande massa de trabalhadores e operários , da lágrima que rola no escuro da alcova, do sorriso monalísico esboçado pela criança que se agarra à côdea de pão. A grande História narrada nos livros , uma aventura de amplos gestos e de gigantescas atitudes, temperada com um quantum considerável de ficção, é um mero arcabouço da inteira história de uma civilização. Tentar reconstituir o passado faz-se sempre o árduo ofício de alguém que coloca as mínimas e incompletas  peças do quebra-cabeças no tabuleiro e, tenta, deduzir dali o colorido mágico da aquarela que um dia existiu. São esses fragmentos desiguais e esparsos dos ladrilhos da memória afetiva, sentimental coletiva que , inseridas , pouco a pouco, por múltiplos memorialistas possibilitam-nos entender um pouco do bordado do passado e tentar depreender, por simples projeção, os rumos das novas aquarelas que pouco a pouco irão sendo debuxadas pelos novos tempos, como afrescos, mas que são simplesmente pintadas com as mesmas tintas com que um dia nossos antepassados grafitaram as cavernas mundo afora.  A memória de um povo é o seu DNA, o núcleo da sua existência. Sem o filme, mesmo incompleto, da nossa trajetória, somos mera projeção de imagens dadaísticas, vazias e estroboscópicas, sem início , meio ou fim.
                                   O Instituto Cultural do Cariri faz 65 anos, neste 4 de outubro. Instituição pobre, órfã de governo, como tantas outras neste Brasil, conseguiu, com o empenho de visionários desenhar o melhor painel que se conhece da História Regional do Sul cearense. Nenhuma outra instituição pública, acadêmica e científica conseguiu delinear um bordado mais  próximo de uma realidade almejada e perseguida e o fez com os cuidados típicos de mentes iluminadas e iluministas.  Irineu Nogueira Pinheiro, Padre Antonio Gomes de Araújo, J. Alves de Figueiredo Filho, Joaryvar Macedo, Plácido Cidade Nuves, F. S. Nascimento, Manoel Patrício de Aquino, Antonio Teodósio Nunes , Pe Antonio Vieira, para citar apenas alguns desses pioneiros, bosquejaram a mais bela tela  memorialística do sul cearense de que se tem notícia. Mentes críticas podem até  inferir que eles colocaram holofotes nesse ou naquele ladrilho , que carregaram nas tintas nessa ou naquela pecinha a seu bel-prazer, atitude típica de qualquer artista que deseja enaltecer algumas nuances da sua obra. Mas é preciso reconhecer que a estes artistas devemos a cola que une nossos incontáveis fragmentos e que faz com que unos possamos nos apresentar como únicos: um povo com uma cultura própria embebida em valores indígenas, afros, lusitanos: valente e guerreiro quando preciso, místico e beato quando necessário.
                                   As sessenta e cinco velinhas que hoje fincamos no bolo  do Instituto Cultural do Cariri  são representativas da fúlgida luz  que a instituição projetou sobre o nosso passado. É  ela mesma que, reflexa,  se  esparrama pelo infinito caminho  à nossa frente, delineando rotas, aclarando veredas, guiando outros magos por novas , benfazejas e messiânicas   sendas.

Crato, 03/10/18  
                                      

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