“Toda
a invenção é memória. (...)
Quem nos arranja os materiais é a memória.
As
tais coisas de que a gente não fala
e
aparecem nos livros, de maneiras
desviadas.”
António Lobo Antunes
A história de uma vila, de um bairro, de uma nação não
se faz apenas com os fatos épicos que
locupletam os livros didáticos. O sangue das batalhas, as grandes
jogadas da política, o heroísmo dos homens da Arte e da Ciência são apenas uma
pequena notícia de rodapé na verdadeira odisseia da humanidade. A saga de um
povo ou de uma cidade passa pelos pequenos gestos desapercebidos da maioria dos
mortais, do dissipável sabor das nossas
mais simples relações cotidianas, do fragor mudo da mãe solteira que
batalha pela sobrevivência da ninhada, do heroísmo imperceptível e cotidiano da
grande massa de trabalhadores e operários , da lágrima que rola no escuro da
alcova, do sorriso monalísico esboçado pela criança que se agarra à côdea de
pão. A grande História narrada nos livros , uma aventura de amplos gestos e de
gigantescas atitudes, temperada com um quantum considerável de ficção, é um
mero arcabouço da inteira história de uma civilização. Tentar reconstituir o
passado faz-se sempre o árduo ofício de alguém que coloca as mínimas e
incompletas peças do quebra-cabeças no
tabuleiro e, tenta, deduzir dali o colorido mágico da aquarela que um dia
existiu. São esses fragmentos desiguais e esparsos dos ladrilhos da memória
afetiva, sentimental coletiva que , inseridas , pouco a pouco, por múltiplos
memorialistas possibilitam-nos entender um pouco do bordado do passado e tentar
depreender, por simples projeção, os rumos das novas aquarelas que pouco a
pouco irão sendo debuxadas pelos novos tempos, como afrescos, mas que são
simplesmente pintadas com as mesmas tintas com que um dia nossos antepassados
grafitaram as cavernas mundo afora. A
memória de um povo é o seu DNA, o núcleo da sua existência. Sem o filme, mesmo
incompleto, da nossa trajetória, somos mera projeção de imagens dadaísticas,
vazias e estroboscópicas, sem início , meio ou fim.
O Instituto Cultural do Cariri faz
65 anos, neste 4 de outubro. Instituição pobre, órfã de governo, como tantas
outras neste Brasil, conseguiu, com o empenho de visionários desenhar o melhor
painel que se conhece da História Regional do Sul cearense. Nenhuma outra
instituição pública, acadêmica e científica conseguiu delinear um bordado
mais próximo de uma realidade almejada e
perseguida e o fez com os cuidados típicos de mentes iluminadas e iluministas. Irineu Nogueira Pinheiro, Padre Antonio Gomes
de Araújo, J. Alves de Figueiredo Filho, Joaryvar Macedo, Plácido Cidade Nuves,
F. S. Nascimento, Manoel Patrício de Aquino, Antonio Teodósio Nunes , Pe
Antonio Vieira, para citar apenas alguns desses pioneiros, bosquejaram a mais
bela tela memorialística do sul cearense
de que se tem notícia. Mentes críticas podem até inferir que eles colocaram holofotes nesse ou
naquele ladrilho , que carregaram nas tintas nessa ou naquela pecinha a seu
bel-prazer, atitude típica de qualquer artista que deseja enaltecer algumas
nuances da sua obra. Mas é preciso reconhecer que a estes artistas devemos a
cola que une nossos incontáveis fragmentos e que faz com que unos possamos nos
apresentar como únicos: um povo com uma cultura própria embebida em valores
indígenas, afros, lusitanos: valente e guerreiro quando preciso, místico e
beato quando necessário.
As sessenta e cinco velinhas que
hoje fincamos no bolo do Instituto
Cultural do Cariri são representativas
da fúlgida luz que a instituição
projetou sobre o nosso passado. É ela
mesma que, reflexa, se esparrama pelo infinito caminho à nossa frente, delineando rotas, aclarando
veredas, guiando outros magos por novas , benfazejas e messiânicas sendas.
Crato, 03/10/18
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