sexta-feira, 26 de outubro de 2018

A Besta, o Dragão e o Cordeiro







                                               Noé Crisóstomo , desde pitototinho, viu-se assoberbado de um sem número de superstições. Todas  as contínuas vicissitudes que lhe foram surgindo durante a vida, não diferente de qualquer um dos mortais, imputava, imediatamente,  ao seu rol interminável de crendices. Para ele , a vida estava, desde o seu início, predestinada e a maneira de auscultar o futuro e prevê-lo devia ser , necessariamente, através de sinais esparsos que o destino ia disseminando pelo caminho. O diabo é que a maioria dessas explicações não tinha valor prospectivo, apenas eram buscados e encontrados depois que a casa já havia sido roubada. Sofrera uma batida no carro ? Crisóstomo, imediatamente, lembrava que, noite anterior, encontrara um gato preto no jardim; levara uma topada e arrancara o chamboque do dedão? Só pode ter sido aquele guarda chuva que abriu ontem dentro de casa !  Havia, claro, os bons e os maus sinais espalhados nas margens dos caminhos da vida do nosso Noé. Deliciava-se quando a palma da mão coçava, imaginando que receberia uma bolada de dinheiro nos próximos dias e tinha imagens de  elefantes  espalhados por toda casa, na certeza de que atrairiam bons fluidos.
                            Nosso Crisóstomo, por outro lado, devotava uma predileção toda especial pelo número 13. Tinha a absoluta certeza de que sempre lhe trouxera sorte, mesmo nas sextas feiras mais tenebrosas. E teria sido por isso mesmo que acrescentou o Noé ao seu nome original na certeza de que junto com as outras dez letrinhas do Crisóstomo, alcançaria, por fim, o número numerologicamente perfeito. Noé era farto em exemplos : Cristo escolhera doze apóstolos justamente porque, com ele, somariam 13; o décimo terceiro salário não era a alegria maior de cada fim de ano ? Qual a passagem da Bíblia mais poética, mais bonita e mais coração? -- O Coríntios 13, dizia um Crisóstomo mais que enfático !  
                            Nestes dias, o nosso Crisóstomo pareceu mais capiongo e com cara de quem andou chupando groselha estragada. Os colegas da repartição notaram a mudança meio súbita, aquele sobressalto de alguém que ouvira o alarme do tsunami. Imaginaram que o nosso Nostradamus tropicara em algum sinal novo de tragédia anunciada. Abordaram um Noé de olhos esbugalhados e perguntaram-no o que havia acontecido. Ele apenas disse com olhar distante e fixo.
                            --- São exatamente 13 Horas !
                            Abriu uma Bíblia surrada que tinha em cima da mesa e pediu, leiam aqui ! Esse é o Capítulo  13 do Apocalipse. Os colegas pegaram o livro sagrado e alguém leu em voz alta para os outros :

                            E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia.
E vi uma das suas cabeças como ferida de morte, e a sua chaga mortal foi curada; e toda a terra se maravilhou após a besta.

E adoraram o dragão que deu à besta o seu poder; e adoraram a besta, dizendo: Quem é semelhante à besta? Quem poderá batalhar contra ela?
E foi-lhe dada uma boca, para proferir grandes coisas e blasfêmias; e deu-se-lhe poder para agir por quarenta e dois meses.
E abriu a sua boca em blasfêmias contra Deus, para blasfemar do seu nome, e do seu tabernáculo, e dos que habitam no céu.
E foi-lhe permitido fazer guerra aos santos, e vencê-los; e deu-se-lhe poder sobre toda a tribo, e língua, e nação.
E adoraram-na todos os que habitam sobre a terra, esses cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo.
                                     Se alguém tem ouvidos, ouça.

                            Após a leitura, os colegas de trabalho entreolharam-se algo pasmos. Crisóstomo tinha os olhos vidrados na parede ! Sussurrou apenas palavras soltas:
                            --- A Besta ferida...Poder sobre toda tribo e Nação...o dragão que dá à besta o seu poder...Blasfêmias... quarenta e dois meses: quatro anos... !
                            No domingo, Noé sairá para  a seção eleitoral. Visionariamente será como se fosse construir uma segunda arca. Levará consigo o número mágico, aquele mesmo que recebeu quase como predestinação desde o nascimento e que digitado, cuidadosamente,   terá o poder -- quem, sabe? -- de subverter as profecias e impedir a imolação contínua do Cordeiro,  que se arrasta desde a fundação do mundo.

Crato, 26/10/18  

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