sexta-feira, 13 de julho de 2018

Tiranossaurus flavius




                                               Hoje, muitas vezes olho no espelho e , do outro lado, um dinossauro me observa. Sinto-me  uma espécie do cretáceo, quando observo o mundo ao meu derredor. Ainda leio e coleciono livros feitos de papel e impressos como um dia Gutemberg os fabricava. Preza-me a sua presença física, com o passar das páginas, o encanto de suas ilustrações, o cheirinho característico do livro novo ou o bolor espirrante dos velhinhos e amarelados.
                                    Acho os e-mails frios e impessoais, com sua linguagem truncada e seus emoticons   repetitivos e , apesar do que o nome poderia sugerir, sem muitas emoções. Claro que me admiro com a velocidade e rapidez de seus percursos, ligando pessoas, mundo a fora, em tempo real, mas  , muitas vezes, angustio-me com a sua fluidez demasiada e a rapidez com que se esfacelam a um simples toque. As cartas traziam, junto com elas, as palpitações da espera, a perspectiva inebriante da campainha que grunhia sob  o dedo do carteiro, e os parágrafos que se estendiam para o nosso deleite ou aflição, com seus substantivos concretos e abstratos, seus doces ou impetuosos adjetivos e suas mensagens cifradas que pulavam em meio às entrelinhas. Sobrava tempo para a reflexão, para a fantasia, para o silêncio: o anverso da moeda da linguagem.
                                    Em meio aos sopapos da agulha das radiolas e  chiados dos discos de vinil, também,  percebíamos mais alma, mais sentimento do que no som limpíssimo que hoje brota do Spotify. É que há sempre uma dose de artificialidade , de inumanidade na perfeição. As músicas antigas buscavam balancear as deficiências da tecnologia com um superávit  na  voz, na qualidade musical, na fineza da poesia, no instrumental.
                                     As pessoas, por outro lado, viam-se episodicamente. Amigos encontravam-se em festas e solenidades, comunicavam-se por cartas, telefones, telegramas eventuais, mas quando o encontro acontecia era uma celebração. Vestiam-se de gala, armavam sorrisos e mesuras, sortiam as mesas com a magia da culinária e a graça esfuziante do vinho , para celebrar nossos solstícios de estações. Hoje, com presença contínua e distante no Smartphone, no Whatsapp, esta onipresença esvaziou e embotou a Arte do Encontro; estamos fisicamente mais perto mas tornamo-nos espiritualmente mais afastados.
                                   A velha enciclopédia Barsa foi tangida para os porões das casas e dos sebos pelo Google que nos fornece, num átimo, 300.000 páginas de referência para um só assunto digitado. Uma abundância excessiva que supera todas as nossas necessidades e nos empurra, de goela abaixo, o joio, o trilho, o milho , o feijão , o  arroz e também seus escolhos. Como catar o excessivo imprestável do fundo da bacia ?
                                   Junto com a velocidade estonteante no bólido dos dias atuais sobra pouco tempo para curtir a paisagem estroboscópica   que nos borra as retinas. Sequer é possível conversar com os outros passageiros que dividem conosco a viagem. Levamos malas e malas  supérfluas que em pouco pairarão livres pelo espaço. A nossa nave, como a Colúmbia,  terá sempre um percurso curtíssimo, e  aguarda a explosão logo ali à frente na reentrada da atmosfera do vale do silêncio ou no pouso final no mar da tranquilidade. A única bagagem que poderíamos desfrutar seria a viagem usurpada pela velocidade que imprimimos ao nosso bólido.
                                   O dinossauro, do outro lado do espelho, volta a me olhar,  agora  com ar de reprovação. É como se me lembrasse que o grande cometa já vem vindo de encontro à terra e que devo botar a violinha no saco e recolher-me à minha insignificância de sauro obsoleto e candidato à extinção. O impacto já se prenuncia e virão tempos de novas eras geológicas, de outras espécies a tomarem de conta do planeta. O mundo que virá não será nem mais bonito nem mais tenebroso do que aquele de antes da explosão. Será apenas um mundo novo. Só.

Crato, 13/07/2018

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