sexta-feira, 27 de julho de 2018

Espora Capiroto


                                                
Minervino Chinchorro sempre viveu nas beiradas do sagrado. Alimentava-se de pão e vinho e  lavava o rosto com água benta. Tivesse tido oportunidades, numa cidade mais próspera que Matozinho, certamente seria hoje padre, quiçá bispo. Beato convicto, gravitava em torno da paróquia da vila, participando ativamente das missas, das comunhões, das quermesses. Nas horas vagas, fazia-se, ainda, rezador, benzendo meninos, batizando pagãos em risco de morte, proferindo jaculatórias para mordidos de cobra e engasgados.  Na vida privada, levava uma vida monástica e simples. Solteirão, aposentara-se como barnabé da antiga SUCAM, função que exercera na capital, como um empedernido mata-ratos. Pendurada a farda cáqui , retornara a Matozinho  e embrenhara-se , definitivamente, nas veredas do ora-pro-nobis, caçando, agora, pecados e satanases. Minervino, também conhecido como Minervino Papa-Hóstia, fazia-se, assim, o braço direito do vigário  , homem da inteira confiança do pároco, um refil de sacristão, a quem se recorria, sempre, nas mais simples e mais complexas atividades administrativas ou ritualísticas da igreja.
                        Papa-Hóstia, assim, foi o natuaralmente nome lembrado quando a paróquia  conseguiu a concessão da primeira Rádio para toda a região: A AM 1087,   Rádio Difusora Espora Capiroto de Matozinho.  O padre Armando Nosberto, então pároco da vila, era de linha  dura como beirada de sino. Ortodoxo como lata de querosene jacaré. Imaginou, imediatamente, que o novo meio de comunicação teria um amplo poder evangelizador, mas, por outro lado, temia as sagazes interferências de Belzebu, sempre malandro e manhoso em  burlar ,com suas artimanhas,  os mais rígidos projetos religiosos. A programação da emissora viu-se , por fim, intencionalmente eivada de programas religiosos com terços,  ladainhas, músicas gospels,  missas transmitidas diariamente. Claro que se fazia necessária uma agenda musical mais profana para não tornar muito repetitiva e chata a Espora-Capiroto . E foi justamente aí que o vigário entendeu existia o calcanhar de Aquiles da  estação radiofônica. À época, a indústria fonográfica estava a pleno vapor e enviava gratuitamente, para as  rádios, os mais recentes lançamentos de discos em vinil, compactos e LP, com o intuito de divulgar mais amplamente os trabalhos. Padre Armando convocou, então, Minervino Papa-Hóstia, pessoa de sua inteira confiança , como uma espécie de censor. Cabia a ele, ouvir detalhadamente cada disco que chegava e , utilizando um prego, riscar as faixas perigosas, evitando, assim, que pudessem ser executadas pelos locutores. Minervino fez uma lista de palavras-chave que, em aparecendo nas letras das músicas, impeliam-no imediatamente à ação devastadora do prego:  beijo, cama, arrocho,  boca, abraço,  peito, perna. Passava, assim, boa parte do dia, nessa ação de censor, batalhando pela moral e os bons costumes da vila de Matozinho.
                                   A função de censor, a princípio, pareceu fácil ao nosso barnabé aposentado. Acostumado à perseguição de ratos e barbeiros pelos campos, a caçada de alguns substantivos e adjetivos pareceu-lhe tarefa sem muitos atropelos. Aos poucos, no entanto, a D. Solange de Matozinho descobriu que a atividade era bem mais complicada do que um dia imaginara. Era uma época em que as músicas com duplo sentido faziam a alegria da rapaziada e apimentava os sambas de pé-de-serra. Minervino engoliu fácil os cinco pebas que seu Malaquias havia preparado e que desencadearam  os gritos orgásmicos, mesclados de  dor de prazer,  de Maria Benta. Não entendeu, por outro lado, o interesse, além do campo meramente comercial, de Pedro Caroço pela butique de Severina Chique-Chique . Papa-Hóstia, também, só tardiamente veio a compreender que o “Passei a noite procurando tu” do Trio Nordestino levava a outras rimas mais chegadas à malagueta. Estes dissabores tomaram de conta da sua consciência quando se viu enganado pela bipolaridade das letras, tendo que passadas algumas semanas, já com as músicas pregadas na língua do povo, tentar, com o prego, apagar um hit já disseminado em meio à população.  O diabo é que , em todas estas ocasiões, como um atestado de incompetência,tivesse sido alertado da sua leseira e falha na censura, pelo próprio Padre Armando.
                                   Houve, no entanto, uma razão inteiramente alheia à sua capacidade de juízo que fez com que pedisse demissão do cargo em caráter irrevogável. Chegara à emissora um compacto de Lupiscínio Rodrigues que tinha uma música muito bonita no Lado A  , chamada “Se Acaso Você chegasse”. Minervino achou a levada muito agradável e vivia cantarolando o sambinha pelos cantos. Utilizando o critério estabelecido previamente, no entanto, foi com pesar que a censurou, pois no finalzinho rezava :
“De dia me lava a roupa,
De noite me beija a Boca
E assim nós vamos vivendo de amor”

                        Em respeito à arte do compositor gaúcho e à música de que gostara muito, Papa Hóstia, resolveu fazer uma concessão: com o prego, cuidadosamente,  riscou apenas  a trilha final que falava na frase proibida “Me beija a boca”. No outro dia, no programa musical “Assubindo pelos Ares”, o locutor resolveu  executar a faixa censurada, sem perceber o defeito provocado por Minervino . E foi exatamente depois dessa execução, quando a agulha enganchou e o trecho ficou se repetindo em loop que Papa Hóstia desesperado, desistiu e  resolveu deixar o cargo definitivamente.
“De dia me lava a roupa,
De noite... chilepo , chilepo, chilepo, chilepo...”

J. Flávio Vieira

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