sexta-feira, 20 de julho de 2018

A Barca de Caronte





                                               Em Crato, talvez o ouvinte não saiba, existe também o nosso Vale dos Reis. Junto à nossa necrópole , o Cemitério Nossa Senhora da Piedade, temos todo um complexo mortuário. A Vila Caveirinha, o CEO ,  o Inferninho e o Purgatório ( representado este pela Delegacia de Polícia, nos arredores do Parque de Exposição) . Agora, com a reforma  ampla da ExpoCrato, perdemos o nosso Inferninho que  foi transferido para uma outra área, mas já sem o glamour , as caldeiras e as labaredas de outrora. Alguns podem até pensar que a demolição do Inferninho representou uma evolução. Mas que seria do Paraíso sem o contraponto imprescindível do Inferno ? A Divina Comédia não teria o mesmo sabor  apenas houvesse as nuvens e a paz do éden e  as seções reformistas do Purgatório. A viagem final não causaria o mesmo frisson sem todas as estações disponíveis à barca de Caronte.
                                   Em meio à maior festa do sul cearense, as barracas, os picadeiros , os galpões enchiam-se de figurões, de remediados diluídos entre a simples curiosidade, a atração mercantil ou o puro e doce entretenimento. A outra face da lua brilhava fosforescente , nos descampados abaixo dos galpões, ao lado da área destinada , hoje, ao FMRB ( Festival de Música Ruim Brasileira). Era o Inferninho , atulhado de barracas mais simples, com som popular para todos os gostos breguianos, onde era possível comprar bebidas, alimentos e até amor verdadeiro, a preços módicos e negociáveis. O Inferninho tinha vida própria e brilhava mais e mais quando o resto do parque adormecia, quando os bacanas e grã-finos fugiam da raia ou iam se entorpecer dos breganejos e no Forrós de Isopor  dos dias atuais. Uma ou outra vez, o satanás pulava de barraca em barraca, com sopapos e saracoteios, mas , no geral, as chamas infernais não chamuscavam seus penitentes , apenas aumentavam a temperatura das goelas e o fervilhar das carnes. Do outro lado dos seus domínios,  piscava uma luz fraquinha e fosca, mesmo sob o efeito do álcool os circunstantes chiques mantinham uma postura e alegria  contidas, degustavam comidas insulsas e esparramavam no tapete seus sorrisos insípidos  de manequim .
                                   A demolição do Inferninho tira muito do tempero da festa. Como enxergar a doçura do sal, sem a comparação opositora do mel ? Como perceber a sutileza dos tons bemóis sem o reverso dos sustenidos ?
                                   Claro que , ao que parece, no aspecto político não se modificou, muito, a corte celestial. Há um paraíso franco para os organizadores, um purgatório para o povaréu e um inferno para onde foram destinados os artistas da região do Cariri, migrantes de uma terra que nunca lhes representou o paraíso mas, ao menos, parecia ser uma Terra Prometida. Saudade daqueles doces diabos de outrora !

Crato, 20/07/2018

Nenhum comentário: