sábado, 7 de julho de 2018

Ponto de Neve


As mãos já não tinham a agilidade e destreza de outrora. Os dedos, algo travados pela oxidação inevitável dos anos, perros, mantinham, no entanto, a doce ciência da separação do joio e do trigo. Aos poucos, as claras foram-se metodicamente colocadas na batedeira, sem que as gemas tivessem maculado sua superfície  translúcida e gelatinosa. Depois, em movimentos rítmicos , carregados da experiência , a mão de D. Generosa recobrou a presteza que o tempo parecia lhe haver sugado. O chacoalhar do batedor, raspando com suas espirais o fundo da vasilha, fez brotar, aquela nuvem branquíssima e delicada do fundo da panela de ágata , aquele cúmulo expansivo , como uma montanha de flocos de algodão. O suspiro de D. Generosa, naquele momento, como que prenunciava os outros suspiros em que logo depois se transformaria o ponto de neve.
                                   Enquanto preparava a assadeira que, logo depois, depositaria no forno, D. Generosa ouviu o toque da campainha e imaginou fosse a filha que voltava da venda com alguns poucos ingredientes que faltavam para o milagre da sua cocção. Com  ajuda da bengala, chegou até à porta e , ao abri-la, deu com um senhor de olhos vívidos e azuis, cabelos alvíssimos como neve,  baixinho, que, com mesuras de um mestre-sala,  num misto  galanteria e polidez, apresentou-se. Disse chamar-se Oduvaldo e   soubera que ela morava ali, através de familiares comuns, disse-se viúvo como ela, tinha já filhos e netos criados e estabelecidos . Lembrou, com um orgulho, que  alguns imóveis e uma aposentadoria confortável lhe proporcionavam uma velhice tranquila e sem maiores atropelos. Tinham sido contemporâneos em bancos de escola e, com a pressa que a perecibilidade dos anos lhe havia trazido, foi direto ao âmago da questão.
                                   --- D. Generosa, tenho pavor de solidão. A senhora, se quiser, pode perguntar sobre mim. Sempre fui uma pessoa direita e honrada. Criei todos os filhos como bom cristão e estão todos bem colocados, graças a Deus ! A senhora casaria comigo ?
                                   A pergunta bateu-lhe com a ressonância de  uma baqueta sobre o zabumba. Pega de surpresa, do alto de seus quase noventa anos, uma corrente elétrica , como um raio, correu pelo corpo frágil, algo trêmulo, de Generosa. Reequilibrou-se, firmou-se nos pés,  como se , de repente, uma lufada de adolescência lhe bafejasse e ressuscitasse o corpo senil. Como se tivesse toda uma resposta pronta, disse que não,  de imediato, que estava velha e queria a placidez dos rios depois das tormentas. Lembrou-lhe  tivera um casamento feliz, que o marido lhe fora uma dádiva dos céus, um misto de companheiro-amigo-amante-pai e que não pensaria, jamais, em macular, de qualquer maneira a memória dos anos felizes. Oduvaldo ainda retorquiu que com ele não tinha sido diferente, mas que as águas passadas pelo moinho da sua vida já não tinham a força de mover as palhetas do seu monjolo e lhe restabelecer a força motriz.
                                   --- Tem vida ainda no restinho da estrada, D. Generosa, é preciso saborear o pirulito até chegar no pauzinho !
                                   Como Generosa continuasse firme , inflexível e algo atônita, Oduvaldo não insistiu muito. Agradeceu pela presteza com que o havia atendido, estendeu-lhe a mão e o sorriso e, sem demonstrar nenhum desapontamento, dobrou na esquina próxima, transparecendo que continuaria na sua busca por um par que lhe acompanhasse pelo restinho das veredas obscuras que se desenrolavam à sua frente.
Generosa retornou à cozinha na missão algo inglória de salvar ainda os ingredientes da iguaria e levá-los ao forno. Quando a filha voltou da bodega ela, sorridente, com uma revolta mesclada com alegria, contou-lhe da história da proposta indecorosa do velho louco que lhe batera à porta. Preocupada, a coroa preocupou-se com o risco de atender  estranhos. Já a havia alertado milhões de vezes que não estava mais no século passado e que a violência agora era uma realidade inquestionável.
  O certo é que , nos dias que se seguiram, D. Generosa já não parecia a mesma: solta, falante, carregara um pouco no perfume, tirara do baú umas roupas coloridas que mal disfarçavam o mofo e o bolor . Até andava mais empertigada, muitas vezes prescindindo totalmente da bengala. Contando depois a história absurda para familiares, suspirou profundamente com ar distante e vago. Um suspiro que acabava de sair do forno da sua vida, depois que Oduvaldo viera chacoalhar a gelatina imóvel dos seus dias e a deixara, novamente,  em ponto de neve.

Crato, 07 de Julho de 2018
                                       

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