Sinésio soube da novidade , na Praça
da Sé, conversando com outros companheiros da terceira idade. Reuniam-se ali , quase que diariamente, logo
cedinho , que velho é bicho madrugador feito tetéu. Falavam, com entusiasmo,
num tal de Forró do Chicote Mole .
Juntava-se, na Exposição, nos domingos,
uma cambada de sobreviventes das duras batalhas da vida, para uma horazinha de
lazer. Num mundo projetado para ser o paraíso da juventude e quando muito o purgatório
dos experientes, aquela era uma notícia para lá de promissora. Sinésio
aposentara-se , há uns cinco anos, com seus sessenta e lá vai pedrada. Fora
coletor de impostos da prefeitura, antes que a modernidade trouxesse os
computadores, a internet, o pagamento bancário por boleto. Enviuvou quando
atravessava a quarta década. Dona Umbilina teve um AVC desses fulminantes que a
fez ensebar o capim, em poucos dias. Os três filhos já tinham ganhado o mundo,
naquele destino nômade típico do cearense, cujo mapa do estado se confunde com
o Mapa-múndi. Foi tocando a vida conforme o prato lhe era servido. Resolveu trocar o atacado do casamento pelo
varejo das relações. Todo mês, quando ia à agência bancária pegar o minguado
dinheirinho do aposento, dava de cara com o mesmo caixa que o olhava com aquela
cara de “ainda vivo?” , de “desse jeito esse velhote quebra a
previdência”. Seu maior lazer era
sentar-se com os ex-combatentes e trocar em miúdo as últimas fofocas cabeludas
da cidade, discutir as questões mais difíceis da história da filosofia como
religião, futebol e política, sabendo que aquilo dava panos para mangas e que
não havia qualquer possibilidade de consenso no próximo milênio. Unia a todos
uma espécie de dor e desencanto comuns, todos, no fundo, embora não
reconhecessem, como que se queixavam de uma ou outra jogada meio troncha realizada no grande tabuleiro da vida.
O
Forró do Chicote Mole tocou Sinésio de maneira muito peculiar. Fora um
dançarino pé-de-ouro em tempos de Jovem Guarda, vivia antenado com a
programação dos bailes, dos convívios e
das tertúlias. A atração entre ele o D. Umbilina havia surgido justamente nas
festinhas. O imã entre os dois foi, desde sempre, muito mais musical e
coreográfico do que amoroso. Depois do casamento, claro, com as atribulações da
vida, de lado a lado, eles terminaram por se afastar das badalações. Diziam
sempre que dançavam todos os dias, mas agora já na segunda acepção da palavra.
Agora, no
entanto, já não havia freio de mão na sua vida, só embreagem e acelerador. Por
que não voltar à ativa e botar o esqueleto para sacolejar ? Comprou uma roupa
nova, um perfume da Avon, emperiquitou-se todo e, no domingo, noitinha, partiu para
o famoso Forró. Antes de entrar no campo de batalha , tomou umas talagadas
numas pequenas barracas ao redor do parque. Esperou que as orelhas esquentassem
e só então adentrou no grande pátio. Ali formigava de gente, sentiu como se
todos ali estivessem ávidos, armando usas armas já meio enferrujadas, com as
últimas balas da cartucheira. Sinésio começou a soltar-se no salão e não lhe
falaram parceiras: o pé-de-ouro ressuscitara. Dançavam todos pelo mero prazer
lúdico do baile, já não existiam muitas restrições no agarrado e nem aquela
ânsia louca, dos velhos tempos, do
sarro, do esfrega-esfrega. Em nenhum momento percebeu a ressureição do vulcão
aparentemente extinto, da retificação do engenho de fogo morto. Sabia que erupções eram sempre
possíveis e que chegando um pouco de bagaço na boca da fornalha contava como
certa a inflamação de materiais que já foram um dia facilmente comburentes.
Pela primeira vez, dançava a dança pela dança, talvez, por isso mesmo,
imaginou, o Forró tivesse aquela denominação de “Chicote Mole”.
Entre as
partes, enquanto o sanfoneiro arrancava dos dedos xotes, sambas e xaxados,
Sinésio continuou o abastecimento nas cachaças dos barraqueiros. Aos poucos,
animado, estava meio grogue e mais bonito e rico do que sempre fora. Talvez
tenha sido a alegria, o charme e a riqueza proporcionados pela “Kariri com K”
que fez dele se aproximar um anjo de criatura: Alta, longos cabelos, corpo
recortado como as ladeiras do Belmonte. Montada num sapato de salto que mais
parecia uma escada, aproximou-se leve, fogosa e sensual e, do alto de seus vinte e poucos anos, convidou Sinésio para o salão. Atracaram-se e caíram na frenética
“Escadaria” , dançando miudinho. O casal era um show a parte e, aos poucos, os
pares que estavam ao lado, se foram afastando e virando plateia. Sinésio feliz,
imaginou que aquilo acontecia por admiração e, também, por alguma inveja, dos
outros velhotes não se conformando em vê-lo se transformar no pegador da festa.
O que não
condizia com o objetivo da festa terminou por acontecer. Excitado, Sinésio
conduzia seu partner para as partes mais
escuras e isoladas do salão, o famoso lugar conhecido por “corrupio”. Viu-se
com o poder alavancador dos velhos tempos, só que, em meio ao frenesi, começou
a perceber uma força contrária, um vetor de igual força e intensidade, como que
comprovando a segunda Lei de Newton, a da ação e reação. Meio desconfiado,
pediu licença para ir ao banheiro, com a autoestima nas alturas. Enquanto
tirava água do joelho, um velhote encostou-se no mictório ao lado e, de cara
sisuda, perguntou se ele era agricultor. Sinésio negou e quis saber porque ele
assim o imaginara. O velho, com cara de poucos amigos e ar reprovativo, deixou o
enigma no ar:
--- Pois é !
Vi logo que não era ! Comprando pepino, como se fosse tomate ! Vivendo e aprendendo !
Lançado ao ar o
enigma da esfinge, Sinésio nem tentou decifrá-lo. Saltou o muro quietinho e
enfurnou-se em casa por uma semana.
Depois do silêncio obsequioso , tentou retornar à normalidade. Voltou, por fim,
à rodinha da praça. Esperava que o enigma permanecesse indecifrável. Mal apontou na extremidade do logradouro, o
coro já entoou a musiquinha com o apelido que, a partir daquela data, o
acompanharia por toda esta encarnação. Referia-se à luta de esgrima acontecida
naquele domingo, em que Sinésio fora espetado sem pena.
“ Maneiro Pau !
Maneiro Pau !
Dê de lá que dou de cá
Maneiro Pau “
Recife, 25/Maio/ 2018
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