segunda-feira, 18 de junho de 2018

Um lírio entre os abrolhos




“Torne-se comum e você será extraordinário;
tente se tornar extraordinário
e você continuará sendo comum...”



                                   Era um amigo pouco peculiar. Com formação profundamente dogmática, versado em muitos idiomas, com  imersão em teologia e conhecedor atilado dos meandros da filosofia que lhe permitiram acessar.  Conseguia, apesar disso,  esticar o pescoço para além da linha do muro. Gostava de Osho, talvez porque o guru indiano abrisse-lhe frestas na porta aparentemente impenetrável cerrada à sua volta. De origem humilde, escarafunchava árvores, arbustos  e garranchos genealógicos, com perspicácia , mesmo com a certeza que naqueles galhos não cantariam pássaros nobres e de sangue azul. Mantinha uma conduta ética impecável, sua vida sempre foi uma linha reta, sem desvios, sem picos ou vales. Tinha, no entanto, um humor fino , leve , às vezes banhado de uma agridoce ironia. Sua espiritualidade não era de superfície e irradiava uma luz interior perene. Mostrava-se um homem de poucas dúvidas, com inteira consciência da efemeridade da sua viagem terrena mas cônscio de que estenderia em outras escalas e dimensões. Extremamente reservado no seu posicionamento político, pouco afeito a extremismos, parecia , no entanto, usando como fulcro, centrar o seu compasso sempre no ponto mais frágil do papel e era dali que demarcava seu círculo no mundo. Como pastor de almas, nunca lhe faltaram palavras  para minorar o sofrimento e as agruras inevitáveis do seu rebanho. Vezes pragmático, outras untado numa meiga filosofia de vida, apontava veredas possíveis em meio aos obstáculos da autopista da existência.
                            Apesar da formação escolástica, em tempos mais plúmbeos e fechados, não era careta, nem vestia-se de falsos moralismos. Conversava-se de tudo  com ele, sem que se sentisse ofendido nem abismado. Um agnóstico como eu, não lhe tirava do sério, talvez porque entendesse que era apenas alguém que deixara  a fé cair em alguma vereda do caminho e estava à procura.  Lembro de ter assistido com ele , em São Paulo,  “Sonhos de uma Noite de Verão” de Shakespeare, numa montagem onírica feita pelo grupo Ornitorrinco. Fiquei um tanto temeroso pois, na peça, apareciam  muitos nus, homens e mulheres. Ele não me pareceu, em nenhum momento, escandalizado. Na volta, o motorista do taxi comentou que soubera  o espetáculo era muito esculhambado e imoral. Ele foi taxativo: não existe nada de imoral na peça, meu filho, aquilo é Arte !
                            Escrevia com muita fluência, um português castiço e correto  e com extremo conhecimento da língua, embora , pela própria formação, tivesse um estilo um tanto cartorial. Deixou uma extensa e importante obra Genealógica impublicada, tecida ao longos de muitos e exaustivos anos, aclarando inúmeros ramos das famílias do Cariri e dos Inhamuns.  Como administrador, muitas vezes foi criticado porque sempre colocou o coração  acima do cérebro. Cada funcionário era, para ele, mais que uma simples peça no tabuleiro da empresa, via-os na complexidade das suas vidas, com suas fraquezas, suas limitações e toda a carga vezes insuportável que a vida lhes tinha  dependurado nas costas. Não se alimentava na frieza tumular das regras administrativas, a instituição não podia, a seu ver, se reger por uma simples tabela de Deve-Haver.
                            Carregava consigo um apurado senso musical, como autodidata chegou, inclusive, a tocar violino. Meu amigo mantinha um papo formidável, com bom humor, com ecletismo, distribuindo  causos e mais causos que lhe foram caindo no landuá da vida.
                            Padre Teodósio levou uma existência franciscana, monástica e simples. Como os lírios do campo, soube ser luxuoso, chique e lorde na mais completa simplicidade. Tornou-se extraordinário , fazendo-se um homem comum, um humilde camponês dos tórridos sertões dos Inhamuns. Que encontre, do outro lado do quintal, a paz e a tranquilidade que tanto destilou quando convivia conosco no imenso casarão. Adeus, meu amigo !

Crato, 15 de Junho de 2018
                               

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