“Torne-se comum e
você será extraordinário;
tente se tornar
extraordinário
e você continuará
sendo comum...”
Era um amigo pouco peculiar. Com
formação profundamente dogmática, versado em muitos idiomas, com imersão em teologia e conhecedor atilado dos
meandros da filosofia que lhe permitiram acessar. Conseguia, apesar disso, esticar o pescoço para além da linha do muro.
Gostava de Osho, talvez porque o guru indiano abrisse-lhe frestas na porta
aparentemente impenetrável cerrada à sua volta. De origem humilde,
escarafunchava árvores, arbustos e
garranchos genealógicos, com perspicácia , mesmo com a certeza que naqueles
galhos não cantariam pássaros nobres e de sangue azul. Mantinha uma conduta
ética impecável, sua vida sempre foi uma linha reta, sem desvios, sem picos ou
vales. Tinha, no entanto, um humor fino , leve , às vezes banhado de uma
agridoce ironia. Sua espiritualidade não era de superfície e irradiava uma luz
interior perene. Mostrava-se um homem de poucas dúvidas, com inteira
consciência da efemeridade da sua viagem terrena mas cônscio de que estenderia
em outras escalas e dimensões. Extremamente reservado no seu posicionamento
político, pouco afeito a extremismos, parecia , no entanto, usando como fulcro,
centrar o seu compasso sempre no ponto mais frágil do papel e era dali que demarcava
seu círculo no mundo. Como pastor de almas, nunca lhe faltaram palavras para minorar o sofrimento e as agruras
inevitáveis do seu rebanho. Vezes pragmático, outras untado numa meiga
filosofia de vida, apontava veredas possíveis em meio aos obstáculos da
autopista da existência.
Apesar da formação
escolástica, em tempos mais plúmbeos e fechados, não era careta, nem vestia-se
de falsos moralismos. Conversava-se de tudo
com ele, sem que se sentisse ofendido nem abismado. Um agnóstico como
eu, não lhe tirava do sério, talvez porque entendesse que era apenas alguém que
deixara a fé cair em alguma vereda do
caminho e estava à procura. Lembro de
ter assistido com ele , em São Paulo, “Sonhos de uma Noite de Verão” de Shakespeare,
numa montagem onírica feita pelo grupo Ornitorrinco. Fiquei um tanto temeroso
pois, na peça, apareciam muitos nus, homens
e mulheres. Ele não me pareceu, em nenhum momento, escandalizado. Na volta, o
motorista do taxi comentou que soubera o
espetáculo era muito esculhambado e imoral. Ele foi taxativo: não existe nada
de imoral na peça, meu filho, aquilo é Arte !
Escrevia com muita
fluência, um português castiço e correto e com extremo conhecimento da língua, embora ,
pela própria formação, tivesse um estilo um tanto cartorial. Deixou uma extensa
e importante obra Genealógica impublicada, tecida ao longos de muitos e
exaustivos anos, aclarando inúmeros ramos das famílias do Cariri e dos
Inhamuns. Como administrador, muitas
vezes foi criticado porque sempre colocou o coração acima do cérebro. Cada funcionário era, para
ele, mais que uma simples peça no tabuleiro da empresa, via-os na complexidade
das suas vidas, com suas fraquezas, suas limitações e toda a carga vezes
insuportável que a vida lhes tinha
dependurado nas costas. Não se alimentava na frieza tumular das regras
administrativas, a instituição não podia, a seu ver, se reger por uma simples
tabela de Deve-Haver.
Carregava consigo um
apurado senso musical, como autodidata chegou, inclusive, a tocar violino. Meu
amigo mantinha um papo formidável, com bom humor, com ecletismo, distribuindo causos e mais causos que lhe foram caindo no
landuá da vida.
Padre Teodósio levou
uma existência franciscana, monástica e simples. Como os lírios do campo, soube
ser luxuoso, chique e lorde na mais completa simplicidade. Tornou-se
extraordinário , fazendo-se um homem comum, um humilde camponês dos tórridos
sertões dos Inhamuns. Que encontre, do outro lado do quintal, a paz e a
tranquilidade que tanto destilou quando convivia conosco no imenso casarão.
Adeus, meu amigo !
Crato, 15 de Junho
de 2018
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