J. Flávio Vieira
Existia uma regra geral típica de
Matozinho. Proprietário de bar, que se prezasse, tinha que ser casca grossa.
Nada de meter-se com mesuras excessivas, com muitos “com licenças”, com
demasiados “por favor”. Bar que que merecesse essa denominação não tinha muitos
querequequés que aquilo não era salão de beleza, não sinhô ! Botequim
tradicional possuía não um dono, mas um
general por trás do balcão. Havia que se manter a autoridade e a ordem
no ambiente. Bêbado se meteu a besta com palavrório inapropriado tinha a boca
fechada por muque. Coçou-se para pegar faca, já encontrava o dono de facão em
punho; sacou de pistola, levava cano de
escopeta nos peitos, antes que pronunciasse qualquer baboseira. Aquilo era
boteco e não cabaré! Cuspia logo o balconista, antes de jogar o primeiro
pinguço engraçadinho de porta para fora. Bar com estes estatutos , ganhava
confiança da freguesia e já era meio caminho andado para o sucesso.
Destoava
dessa regra pétrea o famoso “Cuvioco do Gualberto”. Fazia-se um estabelecimento
mirrado, de duas portas, encravado em uma das ruelas , sem saída, próximo à
Praça da Matriz. Talvez porque fosse uma instituição flex que envolvia mais de
uma atividade comercial. Um misto de bar, de confeitaria, padaria, tabacaria. O
Gualberto , em pauta, era um sessentão, comprido como um dia de fome, mas de
trato fácil, voz mansa e pausada, educado. Nunca o flagraram com rispidezes ,
com altear de voz. Tirante isso, tinha lá suas idiossincrasias. Não era de
levar, também, desaforo para casa e, claro, precisava, à sua maneira, manter a
boa convivência e a boa reputação do seu Cuvioco. Uma das especialidades da
casa eram os doces: banana em rodelas, coco, leite cremoso e talhado. Ficavam
postados sob o balcão, em grandes aribés, envolto por um vidro grosso, como
chamariz para os que transitavam pela calçada. Eram preparados pelas mãos de
fada da esposa do Gualberto: D. Mariquinha.
Para os
padrões matozenses, nosso taberneiro era um gentleman, um diplomata, mais fino
que assovio de sagui gay. Claro que as regras diplomáticas do Itamaraty
sofreram lá seus reajustes até chegarem a Matozinho. Dia desses, “Rosenildo Trapaiada”, um desses malas da
região, o típico malaca que não paga as contas antigas e põe as novas em
incubadora para amadurecerem, pediu uma tirrinta de doce de coco a Gualberto.
Ao terminar, solicitou a conta e , ao saber que se tratara de dois reais, sacou
uma nota de cem do bolso, já contando com a possibilidade de não ter troco
disponível e recair na inevitável “pendura”. Gualberto, com uma calma
beneditina, perguntou ao cliente se não tinha dinheiro mais trocado. Claro que
não tinha!
--- Tenho não, rapaz !
Se vire ! Dê um jeito! Se quiser posso passar depois para acertar, já que não
tem troco.
Como se pegasse um
cálice sagrado na ceia larga, Gualberto rasgou a nota de cem reais no meio e
entregou um pedaço à “Trapaida”, sem se alterar.
--- Tem problema , não !
Você é amigo nosso, de toda confiança. Leve esse pedaço, quando você trouxer os
dois reais, devolvo o outro. Você cola, Rosenildo, e vai ficar como novo ! Se avexe, não !
De outra feita, entrou
no “Cuvioco”, em dia de feira, um matuto meio apressado. Olhou de cima do
balcão de vidro as bacias de doce , logo abaixo e , com o dedo, ficou
tamborilando em cima do vidro, apontando o de sua escolha ,meio exasperado.
--- Toc, toc, toc... Bote
esse aqui ! Bote esse aqui ! Toc, toc, toc...
Gualberto, sossegado,
nem bateu a passarinha. Meteu a mão, pegou a colher de pau dentro da panela e colocou o doce de coco em cima do vidro do
balcão, exatamente no local onde o matuto apontava.
--- Pronto, meu amigo !
Você manda ! Bom apetite !
A história, no entanto,
que levou o povo de Matozinho a admirá-lo, ainda mais, pelas finesse e educação
aconteceu pertinho do São João. Antonildo Jurubeba era um freguês assíduo do “Cuvioco”.
Tinha apenas uma perna, a outra perdera num desastre de trem. Andava com ajuda
de muletas. Tomava lá suas talagadas,
mas frequentava o ambiente mais pelo papo, pelo debulhar da conversa, do que
propriamente pelas meropeias. Tinha o hábito de sentar em um tamborete grande
do bar e recostar as costas na parede,
equilibrando-se apenas nas duas pernas traseiras do banco. Punha-se, então, a
balançar-se, num leve movimento de vai e vem, impulsionado pelo único pé que
lhe restara. Gualberto incomodava-se com aquilo, mas , do alto da sua
diplomacia, não reclamava de Antonildo, parte por conta do defeito, parte
porque temia perder a freguesia. Naquele dia, porém, Gualberto parece ter vindo
trabalhar depois de chute nos quibas.
Jurubeba chegou como sempre, pediu um oito de fubuia e entornou como se fosse
água benta. Encostou as muletas na parede e tomou assento no seu tamborete,
elevando os dois pés dianteiros do bicho
e descansando o lombo na parede de trás.
Nisso, o
depósito de fleugma do proprietário do “Cuvioco” parece ter esvaziado. Sem se
alterar, sem mostrar quaisquer sintomas de exasperação, Gualberto pegou um
serrote, em uma das prateleiras, ajoelhou-se e começou a serrar as pernas
dianteiras e suspensas do tamborete de Antonildo. O homem deu um salto danado.
--- Oxe ! Tá
ficando doido, Gualberto ! Serrando os pés do banco ? Tu num tem o que fazer,
não ?
O dono do
bar, tranquilo, voz leve e macia, com aquela paciência quase que budista, explicou :
--- Nada, não
! Eu notei, Antonildo, que banco pra você só carece ter duas pernas ! Vou cortar essas duas aqui da frente, só serve
pra atrapalhar ! Vai vê, o doutor cortou essa outra sua, por essa mesma causa !
Por essas e
por tantas outras, os matozenses já pensam em dar entrada no processo de
canonização do nosso São Gualberto do Cuvioco.
Crato, 18/05/18
Nenhum comentário:
Postar um comentário