sexta-feira, 5 de janeiro de 2018

Acasos e Ocasos



                               Assolados por ideias de grandeza, puxados por laivos de megalomania, tendemos a imaginar que a vida se alimenta dos mais importantes momentos, dos instantes épicos, das grandes concelebrações. Sempre a ideamos  plena e  untada  nas  almejadas Ilíada e  Odisseia , onde, como protagonistas, assumiríamos o papel de um Ulisses ou de um Teseu com seu Velo de Ouro. Imersos num cotidiano tantas e tantas vezes repetitivo e sem glamour, angustiamo-nos , frequentemente, com o mero papel de ponta, de figurante que terminamos por assumir na tragicomédia da existência. Como no teatro, no grande palco deste mundo, há esfarrapados de sobra para um só Ramsés;  há  plateia vultosa para um reduzido plantel de gladiadores. Diante do espelho, dia após dia, o homem observa sua imagem refletida e grunhe calado: como Alexandre, o grande,  se transformou naquele pobre grumete escaveirado?
                   O viver, no entanto, para o conforto dos homens comuns, não se tece nos grandes painéis, não se pinta e se expõe nos largos outdoors. A vida se fia de uma substância fluida, etérea e amorfa que se esconde na sucessão estroboscópica dos mais simples instantes. Como uma antimatéria da morte,   dissipa-se ao simples contato com o Real. A vida se alimenta de acasos. Uma troca de olhares; um espermatozoide que, numa maratona, encontrou com um óvulo; o aborto que não aconteceu; o parto que não complicou; o sarampo que cooperou; acidentes que a sorte evitou; uma troca de olhares... e o ciclo vital segue seu curso !  Ela, também, implode-se , dia após dia, em simples acasos. Armada a corda bamba da existência,  saímos , eternos equilibristas, esperando uma lufada mais forte do vento; o movimento da sombrinha que não corrige o corpo pênsil  ; o salto e o baque.
                   A vida, assim, não se concentra na grandiosidade do visível e do maiúsculo; ela vela-se nas entrelinhas do microscópico, longe das medalhas, das estátuas, dos obeliscos. Evapora-se entre acasos e ocasos. Parece um algodão doce que o menino leva à boca:  inexequível  mastigar, lamber, engolir; dura o fugaz segundo do contato com a língua. Impossível palpar a nuvem branca e dissolúvel à nossa frente. Contentemo-nos  com seu  inefável e efêmero docinho.

Crato, 05/01/2018    

                   

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