Assolados por ideias de grandeza,
puxados por laivos de megalomania, tendemos a imaginar que a vida se alimenta dos
mais importantes momentos, dos instantes épicos, das grandes concelebrações.
Sempre a ideamos plena e untada
nas almejadas Ilíada e Odisseia , onde, como protagonistas, assumiríamos
o papel de um Ulisses ou de um Teseu com seu Velo de Ouro. Imersos num
cotidiano tantas e tantas vezes repetitivo e sem glamour, angustiamo-nos ,
frequentemente, com o mero papel de ponta, de figurante que terminamos por
assumir na tragicomédia da existência. Como no teatro, no grande palco deste
mundo, há esfarrapados de sobra para um só Ramsés; há plateia vultosa para um reduzido plantel de
gladiadores. Diante do espelho, dia após dia, o homem observa sua imagem
refletida e grunhe calado: como Alexandre, o grande, se transformou naquele pobre grumete
escaveirado?
O viver, no entanto, para o
conforto dos homens comuns, não se tece nos grandes painéis, não se pinta e se expõe
nos largos outdoors. A vida se fia de uma substância fluida, etérea e amorfa que
se esconde na sucessão estroboscópica dos mais simples instantes. Como uma
antimatéria da morte, dissipa-se ao simples contato com o Real. A
vida se alimenta de acasos. Uma troca de olhares; um espermatozoide que, numa
maratona, encontrou com um óvulo; o aborto que não aconteceu; o parto que não
complicou; o sarampo que cooperou; acidentes que a sorte evitou; uma troca de
olhares... e o ciclo vital segue seu curso ! Ela, também, implode-se , dia após dia, em
simples acasos. Armada a corda bamba da existência, saímos , eternos equilibristas, esperando uma
lufada mais forte do vento; o movimento da sombrinha que não corrige o corpo pênsil
; o salto e o baque.
A vida, assim, não se
concentra na grandiosidade do visível e do maiúsculo; ela vela-se nas
entrelinhas do microscópico, longe das medalhas, das estátuas, dos obeliscos.
Evapora-se entre acasos e ocasos. Parece um algodão doce que o menino leva à
boca: inexequível mastigar, lamber, engolir; dura o fugaz
segundo do contato com a língua. Impossível palpar a nuvem branca e dissolúvel à
nossa frente. Contentemo-nos com seu inefável e efêmero docinho.
Crato, 05/01/2018
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