sexta-feira, 12 de janeiro de 2018

Cine Babilônia


                                              
Deusdedith Chinchorro  chegara a Matozinho como caxeiro viajante. Vinha de Serrinha dos Nicodemos, em lombo de burro, carregando uma infinidade de quinquilharias : roupas, adereços, perfumes, pós, batons, ferramentas, chapéus, chocolates e biscoitos finos. Perambulava nas vilas da redondeza, fazendo-se uma espécie de shopping center ambulante. Deusdedith  abastecia-se, em Serrinha, de outros tropeiros que provinham da capital, sublocando, assim a atividade mercantil. A  vinda do nosso mascate era aguardada com uma certa ansiedade e existia, inclusive, uma programação de visitas: de início as madames de maior poder aquisitivo e, por, fim a classe média e o povaréu. Terminado o primeiro dia de visitação, já quase tinham se esvaído os últimos itens a ser comercializados. Aquele se fizera um ano de inverno propício que, se por um lado, tinha encharcado as estradas , dificultando a viagem, por outro, enchera de esperança e dinheiro os alforjes do camponês. E o campesino sabe perfeitamente que seu bem estar depende muito mais de questões climatológicas que de ações políticas.
                                               Terminadas as atividades comerciais do segundo dia,  Chinchorro,  serelepe como pinto em apanha de arroz, fincou praça no Bar de Godô. E foi na difusora local das fofocas matozenses que lhe contaram sobre uma novidade na vila. Tinha sido inaugurada, na semana anterior, o  Cine Babilônia e , desde então, exibia-se a película “A Paixão de Cristo”.  O mascate , nascido e vivido em Serrinha, acostumado à luz de pifó e de fogueira, viajadíssimo, mas só nas quebradas mais brejeiras desse mundão de meu deus, criou sustança nas canelas para conhecer a novidade. No dia seguinte, na boquinha da noite, já estava Deusdedith na fila para comprar o ingresso. Após a aquisição, foi informado que era preciso levar a cadeira que foi, imediatamente, alugada no Bar de Godô. Meio desconfiado, como cachorro em noite de São João, sentou-se um pouco mais atrás, próximo à porta, rota de fuga, em caso de ser arrolado como testemunha no processo de Caifás. Só então observou melhor o ambiente. A sala era pequena e abrigava apenas umas vinte e poucas pessoas, todos transparecendo uma certa ansiedade. À frente uma grande colcha branca pregada na parede às custas de tachas , fazia as vezes de tela. Atrás uma máquina esquisita, movida a magneto, que, quando cutucada, cuspia um canudo de luz incandescente.  Logo abaixo, estavam acomodados , a um lado , os dois músicos, contratados diretamente da banda municipal: o saxofonista “Abelha” e o pandeirista “Fon-Fon”, responsáveis pela música incidental quando da projeção da película , uma vez que a tecnologia matozense ainda não tinha alcançado o cinema falado. De comum acordo, Abelha e Fon-Fon entenderam que era preciso adaptar músicas do cancioneiro nacional para fazer a trilha sonora da “Paixão”, assim ficaria mais fácil para a matutada compreender o script e sentir o clima.
                                   De repente, o torpedo de luz começou a jogar as imagens, em movimento, na tela. Os espectadores, de início, tentavam entender o que estava acontecendo, mas , rapidamente, foram arrebatados pela magia do cinema. A fuga do Egito, a manjedoura, o nascimento de Cristo. Aí Abelha e Fon-Fon já atacaram ao ver o Cristo pequeninho saltitando entre os animais:
                                   “Mamãe eu quero, Mamãe eu quero,
                                   Mamãe eu quero mamar...
                                   Dá a chupeta, dá a chupeta,
                                   Dá a chupeta pro neném num chorar !”
                                  
                                   Logo adiante, quando Jesus,  já com seus discípulos, evita o apedrejamento de Maria Madalena, a orquestra já tinha escolhido a música adequada arrancada de Ataulfo Alves:
                                   “ Atire a primeira pedra, ai, ai, ai
                                   Aquele que não sofre por amor...”
                                   A plateia, com olhos lacrimejantes acompanhava o desenrolar das ações, já temendo o epílogo trágico. Deusdedith, capiongo como em missa de sétimo dia, acompanhava a Paixão. De repente, a cerimônia do beija-pé. A banda já tinha, previamente, escolhido o repertório do acervo de J. Cascata :
                                   “Ô pé de anjo, ô pé de anjo,
                                   És rezador, és rezador,
                                   Tens o pé tão grande
                                    Que és capaz de pisar Nosso Senhor”
                                   Adiante, frente ao sofrimento indescritível da cruz, Nossa Senhora ajoelha-se ante o Cristo crucificado e Abelha põe a trilha :
                                  
                                 “Aos pés da Santa Crus,
                                   Você se ajoelhou
                                   E , em nome de Jesus,
                                   Um grande amor você jurou”.

                                   Próximo ao último suspiro, Jesus balbuciando o    “Eli, Eli, lamá sabactâni, soluços altos ouviam-se por todos os cantos. Abelha, então, traz sua música incidental para a gravidade do momento:
                                   “Ai, Ai, Ai, Ai,
                                   Está chegando a hora !
                                   O dia já vem raiando, meu bem,
                                   Eu tenho que ir embora”

                                   A última cena da “Paixão” trazia o momento máximo da esperança, quando a pedra do túmulo, no terceiro dia, resvalou e o Cristo ressuscitou, aparecendo para várias pessoas, nos  quarenta dias seguintes. Neste instante, estranhamente,  a banda simplesmente colocou os instrumentos no chão e passou, então, apenas a assoviar, freneticamente, até o aparecimento, na tela do “The End”.
                                   A plateia não entendeu bem , a escolha do silvo apenas dos músicos, na apoteose do espetáculo. Deusdedith , com a importância e empáfia que o nome lhe trazia, procurou Abelha, antes de sair e perguntou, diretamente, a razão do Assobio final. O músico , então, desvendou o mistério.
                                   --- Por que o assobio ? Ora, ora, depois que Cristo ressuscitou e pegou a aparecer como visage pruma ruma de gente, que que ele fez ? Ele num foi pro céu, sentar do lado direito de Deus ? Pois, então ? Ele ASSUBIU !



                                                                Crato, 12/01/2018 

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