Terminadas
as atividades comerciais do segundo dia,
Chinchorro, serelepe como pinto
em apanha de arroz, fincou praça no Bar de Godô. E foi na difusora local das
fofocas matozenses que lhe contaram sobre uma novidade na vila. Tinha sido
inaugurada, na semana anterior, o Cine
Babilônia e , desde então, exibia-se a película “A Paixão de Cristo”. O mascate , nascido e vivido em Serrinha,
acostumado à luz de pifó e de fogueira, viajadíssimo, mas só nas quebradas mais
brejeiras desse mundão de meu deus, criou sustança nas canelas para conhecer a
novidade. No dia seguinte, na boquinha da noite, já estava Deusdedith na fila
para comprar o ingresso. Após a aquisição, foi informado que era preciso levar
a cadeira que foi, imediatamente, alugada no Bar de Godô. Meio desconfiado,
como cachorro em noite de São João, sentou-se um pouco mais atrás, próximo à
porta, rota de fuga, em caso de ser arrolado como testemunha no processo de
Caifás. Só então observou melhor o ambiente. A sala era pequena e abrigava
apenas umas vinte e poucas pessoas, todos transparecendo uma certa ansiedade. À
frente uma grande colcha branca pregada na parede às custas de tachas , fazia
as vezes de tela. Atrás uma máquina esquisita, movida a magneto, que, quando
cutucada, cuspia um canudo de luz incandescente. Logo abaixo, estavam acomodados , a um lado ,
os dois músicos, contratados diretamente da banda municipal: o saxofonista “Abelha”
e o pandeirista “Fon-Fon”, responsáveis pela música incidental quando da
projeção da película , uma vez que a tecnologia matozense ainda não tinha
alcançado o cinema falado. De comum acordo, Abelha e Fon-Fon entenderam que era
preciso adaptar músicas do cancioneiro nacional para fazer a trilha sonora da “Paixão”,
assim ficaria mais fácil para a matutada compreender o script e sentir o clima.
De repente, o
torpedo de luz começou a jogar as imagens, em movimento, na tela. Os
espectadores, de início, tentavam entender o que estava acontecendo, mas ,
rapidamente, foram arrebatados pela magia do cinema. A fuga do Egito, a manjedoura,
o nascimento de Cristo. Aí Abelha e Fon-Fon já atacaram ao ver o Cristo pequeninho
saltitando entre os animais:
“Mamãe eu quero, Mamãe eu quero,
Mamãe eu quero mamar...
Dá a chupeta, dá a chupeta,
Dá a chupeta pro neném num chorar
!”
Logo adiante,
quando Jesus, já com seus discípulos,
evita o apedrejamento de Maria Madalena, a orquestra já tinha escolhido a
música adequada arrancada de Ataulfo Alves:
“ Atire a primeira pedra, ai, ai, ai
Aquele que não sofre por amor...”
A plateia,
com olhos lacrimejantes acompanhava o desenrolar das ações, já temendo o
epílogo trágico. Deusdedith, capiongo como em missa de sétimo dia, acompanhava
a Paixão. De repente, a cerimônia do beija-pé. A banda já tinha, previamente,
escolhido o repertório do acervo de J. Cascata :
“Ô pé de anjo, ô pé de anjo,
És rezador, és rezador,
Tens o pé tão grande
Que
és capaz de pisar Nosso Senhor”
Adiante, frente ao sofrimento indescritível
da cruz, Nossa Senhora ajoelha-se ante o Cristo crucificado e Abelha põe a
trilha :
“Aos pés da Santa Crus,
Você se ajoelhou
E , em nome de Jesus,
Um grande amor você jurou”.
Próximo ao último suspiro, Jesus
balbuciando o “Eli, Eli, lamá sabactâni, soluços altos ouviam-se por todos os
cantos. Abelha, então, traz sua música incidental para a gravidade do momento:
“Ai, Ai, Ai, Ai,
Está chegando a hora !
O dia já vem raiando, meu bem,
Eu tenho que ir embora”
A última cena da “Paixão” trazia o
momento máximo da esperança, quando a pedra do túmulo, no terceiro dia,
resvalou e o Cristo ressuscitou, aparecendo para várias pessoas, nos quarenta dias seguintes. Neste instante,
estranhamente, a banda simplesmente
colocou os instrumentos no chão e passou, então, apenas a assoviar,
freneticamente, até o aparecimento, na tela do “The End”.
A plateia não
entendeu bem , a escolha do silvo apenas dos músicos, na apoteose do espetáculo.
Deusdedith , com a importância e empáfia que o nome lhe trazia, procurou
Abelha, antes de sair e perguntou, diretamente, a razão do Assobio final. O
músico , então, desvendou o mistério.
--- Por que o
assobio ? Ora, ora, depois que Cristo ressuscitou e pegou a aparecer como
visage pruma ruma de gente, que que ele fez ? Ele num foi pro céu, sentar do
lado direito de Deus ? Pois, então ? Ele ASSUBIU !
Crato, 12/01/2018
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