O velho
Vicente Vieira, no início dos anos 50, precisou empreender uma viagem a
Salvador, inteiramente a contragosto. Matuto de quatro costados, bicho do mato
da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, semianalfabeto ; um dia teve como que
uma revelação dessas que despertam figuras místicas como Tereza de Calcutá e
Francisco de Assis. Resolveu, de pronto, que os filhos que já fervilhavam ao
seu redor, como pintos em palhiço, deveriam levantar voo e estudar. Este
pensamento era totalmente atípico na sua época, quando os rebentos iam se
acumulando nos trabalhos agrícolas, seguindo os passos dos pais, e seu mundo
terminava por se limitar às escarpas da Serra Negra e do Riacho do Machado. A
revolução do velho Vicente não só abriu os horizontes dos meninos da Lagoa dos
Órfãos. Impeliu também a que parentes próximos tomassem a mesma decisão. De
repente, uma revoada de guris levantava voo para cidades maiores, em busca da
alfabetização e do conhecimento. Depois daquele dia, aquelas
brenhas jamais seriam as mesmas. Seu Vicente, dentro da vida opressiva e
incerta da agricultura nordestina, vislumbrou aquilo que os governos , muitas
vezes intencionalmente, ignoram : só a Educação tem a capacidade redentora de
transformar mentes, homens e nações.
Naquele 1952, o
deslocamento até à capital da Bahia parecia proeza para um Indiana Jones. Embarcar
em algum caminhão por estradas esburacadas e quase intransitáveis até à beira do São Francisco, fazer a
travessia em um Ferry-boat e pegar o trem, do outro lado, em Senhor do Bonfim que arrastava-se lento até
à capital. O percurso durava, com sorte, entre sete a dez dias. Aquela sua viagem a Salvador, apesar do
contratempo, tinha um sabor especial. O velho Vicente ia participar da
formatura do terceiro filho homem, Raimundo, em Medicina , na mais tradicional
Escola Médica do Brasil. Aquele se fazia como o ponto alto do sonho
premonitório que um dia o tomou de assalto nas ressequidas matas da Lagoa dos
Órfãos. Dadas as circunstâncias de penúria e dificuldades, aquela vitória
assemelhava-se à sua Stalingrado. Derrotara rua por rua, casa por casa, beco
por beco, dois inimigos poderosos e tidos como invencíveis : a miséria e a
pobreza. Simples, embarcou para a festa com poucos penduricalhos no seu
matulão: roupas novas que adquirira, ainda com cheiro de naftalina, nas Casas
Abraão em Crato; sapatos novos que para ele eram um terrível incômodo a substituir a
comodidade das suas currulepes. Ah ! levava também sua sabedoria matuta curtida
e destilada na universidade da vida e a
irreverência que bebera nas águas barrentas da Extrema e das Calabaças.
Em Salvador, em meio aos
atropelos e à velocidade da cidade grande, sentiu-se um pouco como preá dentro
de fojo. Acostumado à vida em 16 rotações, aquelas 78 do disco de cera baiano
lhe pareciam opressivas. Pressentia que, com acelerador atolado, o carro da existência chegava mais rápido a
sua estação final: o Abismo. Agoniou-se com o aperto das suas acomodações no
quarto de terceiro andar na República do
filho, mas a alegria sobrepujava todas essas aparentes vicissitudes. Sabendo
das dificuldades do pai , em Várzea Alegre, para atendimento especializado, o
futuro Dr. Raimundo marcou uma consulta para o velho com um dos seus
professores: Dr. Fernando Filgueiras. O médico -- pasmem ! -- tinha profunda formação humanística e viu-se, num átimo, tomado pela conversa franca
do matuto e por seu linguajar límpido e peculiar. Seu Vicente fez-lhe logo um
pedido:
--- Doutor, vou pedir só
uma coisa ao senhor. Depois que me consultar, queria que me desse a receitar do “De Venha cá”.
Dr. Fernando, risonho,
sem entender bem, quis destrinchar o pedido :
--- Mas que consulta é
essa seu Vicente ?
--- Doutor, o senhor vai
passar uns remédios e vai dizer : tome tudinho e depois “venha cá!” . Aí , quando eu voltar, vai
passar outra melhor que vai resolver meus problemas. Eu moro longe , a mais de
cem léguas, e cá num piso mais. Quero, então, que o senhor me dê logo a receita
final, a do “De venha cá!”.
Entre as muitas
peripécias do velho Vicente em terras cabralinas contava ele , ao médico, a sua eterna reclamação com os banheiros. Para
Vicente , acostumado a ter a floresta como WC, aquilo era um cerceamento total
de liberdade.
--- O povo aqui é como
jumento de lote, Dr. Fernando, caga tudo
num monte só !
--- Seu Vicente e como é
lá na Várzea Alegre, não tem toillete, não ?
--- Tem o campo todo,
Dr. Fernando. Cada dia o banheiro é uma moita diferente ! O senhor não sabe o
que é felicidade, não. Se acocorar debaixo de um pé de pião roxo, fumando um
cigarro de palha e , depois, se limpar com um sabugo ! Oh ! alívio, Oh ! felicidade !
--- Com um sabugo, seu
Vicente ? E presta ? Num tem papel
higiênico não ?
--- Papel higiênico ? Tá
doido, seu doutor ?! Papel higiênico perde feio pra sabugo ?
--- Como assim, seu
Vicente ?
--- Sabugo tem logo três
serventias : limpa, coça e penteia ! E aqui na Bahia, depois do meio dia, parece que tem ainda outras prestâncias !
Depois da colação de
grau de Raimundo, Seu Vicente voltou ao médico, levando uns exames solicitados
e, também, decidido a pegar a receita do “ De venha ca´”. Dr. Fernando, então,
começa a encompridar conversa. O velho Vicente disse-lhe que havia passado um aperreio danado
depois da festança. Degustara a típica comida baiana, puxada a dendê, e a iguaria o tinha destemperado. Tinha
retornado à República apertado , deixado os convidados na comemoração.
--- Passei a noite
cagando sem o cu saber , seu doutor ! O pior é que procurei sabugo no banheiro
e não tinha, nem papel, nem folha, nem pedra. Não tinha como me limpar.
--- Vixe, Seu Vicente !
E como diabos foi que o senhor resolveu essa sinuca de bico ?
--- Dr. Fernando, só
teve um jeito e melhor a até que o sabugo . Era tarde da noite e, eu nu,
desci escanchado no corrimão da escada : vulpt !
25/08/2017
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