sexta-feira, 25 de agosto de 2017

Vulpt !

O velho Vicente Vieira, no início dos anos 50, precisou empreender uma viagem a Salvador, inteiramente a contragosto. Matuto de quatro costados, bicho do mato da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, semianalfabeto ; um dia teve como que uma revelação dessas que despertam figuras místicas como Tereza de Calcutá e Francisco de Assis. Resolveu, de pronto, que os filhos que já fervilhavam ao seu redor, como pintos em palhiço, deveriam levantar voo e estudar. Este pensamento era totalmente atípico na sua época, quando os rebentos iam se acumulando nos trabalhos agrícolas, seguindo os passos dos pais, e seu mundo terminava por se limitar às escarpas da Serra Negra e do Riacho do Machado. A revolução do velho Vicente não só abriu os horizontes dos meninos da Lagoa dos Órfãos. Impeliu também a que parentes próximos tomassem a mesma decisão. De repente, uma revoada de guris levantava voo para cidades maiores, em busca da alfabetização e do conhecimento. Depois daquele dia,   aquelas brenhas jamais seriam as mesmas. Seu Vicente, dentro da vida opressiva e incerta da agricultura nordestina, vislumbrou aquilo que os governos , muitas vezes intencionalmente, ignoram : só a Educação tem a capacidade redentora de transformar mentes, homens e nações.
                        Naquele 1952, o deslocamento até à capital da Bahia parecia proeza para um Indiana Jones. Embarcar em algum caminhão por estradas esburacadas e quase intransitáveis  até à beira do São Francisco, fazer a travessia em um Ferry-boat e pegar o trem, do outro lado,  em Senhor do Bonfim que arrastava-se lento até à capital. O percurso durava, com sorte, entre sete a dez dias.  Aquela sua viagem a Salvador, apesar do contratempo, tinha um sabor especial. O velho Vicente ia participar da formatura do terceiro filho homem, Raimundo, em Medicina , na mais tradicional Escola Médica do Brasil. Aquele se fazia como o ponto alto do sonho premonitório que um dia o tomou de assalto nas ressequidas matas da Lagoa dos Órfãos. Dadas as circunstâncias de penúria e dificuldades, aquela vitória assemelhava-se à sua Stalingrado. Derrotara rua por rua, casa por casa, beco por beco, dois inimigos poderosos e tidos como invencíveis : a miséria e a pobreza. Simples, embarcou para a festa com poucos penduricalhos no seu matulão: roupas novas que adquirira, ainda com cheiro de naftalina, nas Casas Abraão em Crato; sapatos novos que para  ele eram um terrível incômodo a substituir a comodidade das suas currulepes. Ah ! levava também sua sabedoria matuta curtida e destilada na universidade da vida  e a irreverência que bebera nas águas barrentas da Extrema e das Calabaças.
                        Em Salvador, em meio aos atropelos e à velocidade da cidade grande, sentiu-se um pouco como preá dentro de fojo. Acostumado à vida em 16 rotações, aquelas 78 do disco de cera baiano lhe pareciam opressivas. Pressentia que, com acelerador atolado,  o carro da existência chegava mais rápido a sua estação final: o Abismo. Agoniou-se com o aperto das suas acomodações no quarto de terceiro andar na  República do filho, mas a alegria sobrepujava todas essas aparentes vicissitudes. Sabendo das dificuldades do pai , em Várzea Alegre, para atendimento especializado, o futuro Dr. Raimundo marcou uma consulta para o velho com um dos seus professores: Dr. Fernando Filgueiras. O médico -- pasmem ! --  tinha profunda formação humanística e  viu-se, num átimo, tomado pela conversa franca do matuto e por seu linguajar límpido e peculiar. Seu Vicente fez-lhe logo um pedido:
                        --- Doutor, vou pedir só uma coisa ao senhor. Depois que me consultar,  queria que me desse a receitar do “De Venha cá”.
                        Dr. Fernando, risonho, sem entender bem, quis destrinchar o pedido :
                        --- Mas que consulta é essa seu Vicente ?
                        --- Doutor, o senhor vai passar uns remédios e vai dizer : tome tudinho e depois  “venha cá!” . Aí , quando eu voltar, vai passar outra melhor que vai resolver meus problemas. Eu moro longe , a mais de cem léguas, e cá num piso mais. Quero, então, que o senhor me dê logo a receita final, a do “De venha cá!”.
                        Entre as muitas peripécias do velho Vicente em terras cabralinas contava ele , ao médico,  a sua eterna reclamação com os banheiros. Para Vicente , acostumado a ter a floresta como WC, aquilo era um cerceamento total de liberdade.
                        --- O povo aqui é como jumento de lote, Dr. Fernando,  caga tudo num monte só !
                        --- Seu Vicente e como é lá na Várzea Alegre, não tem toillete, não ?
                        --- Tem o campo todo, Dr. Fernando. Cada dia o banheiro é uma moita diferente ! O senhor não sabe o que é felicidade, não. Se acocorar debaixo de um pé de pião roxo, fumando um cigarro de palha e , depois, se limpar com um sabugo !  Oh ! alívio, Oh ! felicidade !
                        --- Com um sabugo, seu Vicente ? E presta ?  Num tem papel higiênico não ?
                        --- Papel higiênico ? Tá doido, seu doutor ?! Papel higiênico perde feio pra sabugo ?
                        --- Como assim, seu Vicente ?
                        --- Sabugo tem logo três serventias : limpa, coça e penteia ! E aqui na Bahia, depois do meio dia,  parece que tem ainda outras prestâncias !
                        Depois da colação de grau de Raimundo, Seu Vicente voltou ao médico, levando uns exames solicitados e, também, decidido a pegar a receita do “ De venha ca´”. Dr. Fernando, então, começa a encompridar conversa. O velho Vicente  disse-lhe que havia passado um aperreio danado depois da festança. Degustara a típica comida baiana, puxada a dendê,  e a iguaria o tinha destemperado. Tinha retornado à República apertado , deixado os convidados na comemoração.
                        --- Passei a noite cagando sem o cu saber , seu doutor ! O pior é que procurei sabugo no banheiro e não tinha, nem papel, nem folha, nem pedra. Não tinha como me limpar.
                        --- Vixe, Seu Vicente ! E como diabos foi que o senhor resolveu essa sinuca de bico ?
                        --- Dr. Fernando, só teve um jeito e melhor a até que o sabugo .  Era tarde da noite e,   eu nu, desci escanchado no corrimão da escada : vulpt !


25/08/2017

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