sexta-feira, 4 de agosto de 2017

Abre-te , Sésamo !


                                               --- Floresceu !
                                   Aquelas palavras abacadrábicas parecem ter sido pronunciadas como uma espécie de senha. Hortelina fitara a natureza, ao derredor, com olhos baços e distantes ,num desses janeiros chuvosos , depois do ressequido e  implacável bê-erre-o-bró  e deixou escapar aquela palavra , pausadamente, sílaba por sílaba, quase como uma prece. O certo é que, depois daquele dia e daquela citação algo solene, uma inesperada revolução aconteceu na vida de Hortelina. Os últimos dois anos tinham sido pesados e tortuosos. Cada amanhecer trazia consigo sua carga inesgotável de dissabores e atropelos. A sensação que a mocinha percebia era a de que comera o caju saboroso e doce da existência e, chegando ao finalzinho, sorvia o travo que lhe punha a língua em carne viva.
                                    Vivera um casamento de Conto de Fadas por mais de vinte anos. Cristovaldo, o marido, um notário , dera-lhe uma vida tranquila e confortável. Tiveram um amor de adolescência , de princípio devastador e incendiário, mas que se manteve arrefecido , por brasas de amizade e respeito,  quando os ventos da idade já não alimentaram tanto as chamas e elas começaram a perder o vigor de outrora. Hortelina e Cristovaldo eram inseparáveis e o sentimento que os unia transparecia reciprocidade. Nunca se soube de aventuras do nosso tabelião, todos que o conheciam eram unânimes em dizer que jamais mijara fora do caco. Vieram três filhos, criados neste ninho acolhedor, que , crescidos, como bons nordestinos, levantaram voo em busca do Shangri-lá do Sul. Biblicamente, Cristovaldo e Hortelina  resolveram envelhecer com o parceiro da juventude e mantiveram-se juntos, como se untados em Araldite, até que , há uns dois anos, chegou o visitante inesperado. Sem aviso, sem altercações, levou Cristovaldo para aquele  acerto final de contas , untado em nada , aspergido em pó.
                                   Impossível avaliar o imenso impacto que a perda despejou em cima da pobre Hortelina. Viúva, fechou-se para o mundo. Enclausurou-se , saindo eventualmente para as missas do domingo. Amigas mais próximas tentaram ajudar, aproximaram-se, tentaram demovê-la daquele luto pesado: em vão. Imaginaram-na depressiva e contavam, como favas contadas, que mais dia, menos dia, Hortelina iria encontrar com seu amor eterno, quebrando a inexorabilidade do contrato nupcial do “até que a morte os separe!”.  Hortelina manteve-se inflexível até , exatamente, aquele janeiro em que fitou o horizonte e, de olhos brilhantes, citou a senha da ressureição: “Floresceu !  
                        O certo é que , após aquele Abre-te-Sésamo, a vida de Hortelina virou de ponta cabeça. Tomou um banho de loja, refez o cabelo e a maquiagem, remasterizou as amizades, agora cercando-se com mocinhas solteiras e ariscas. Passou a ser fichinha carimbada de festas e bailes e pôs-se a trocar de namorados , como trocava de roupas e acessórios. Aquela mudança súbita e  tão radical chocou amigos e conhecidos. “Endoidou!” “Vamos ser viúva alegre, mas assim já é demais!” “O pobre do Cristovaldo deve está estrebuchando na cova!” Estes eram os comentários que se ouviam nas pontas de rua. O velho Zeferino Seabra, estupefato com a transformação de Hortelina, comentou um dia com a esposa:
                        --- Matilde, se eu adivinhasse que, morrendo, tu ficava feliz como essa Hortelina, eu juro por Deus, mulher, eu me suicidava !


                        Ninguém conseguiu entender aquela mudança súbita e abrupta  , do vinagre ao vinho, na vida de Hortelina. Um dia ela confidenciou a uma das novas amigas. Tristonha, depressiva, solitária, naquele dia , na calçada do casarão, pôs-se a contemplar a natureza. Com tantos meses de estio, o marmeleiro tinha desde agosto,  despido-se da sua folhagem. A paisagem acinzentara-se, com galhos estendendo-se aos céus, como em prece por melhores tempos. Com as primeira chuvas, no entanto, vira naquele dia, as árvores vestirem, novamente, o mais lindo vestido verde e explodirem em flores brancas para o himeneu que já se prenunciava. Hortelina, enquanto se arrumava para sair com a amiga, explicou, então,  as forças da sua metamorfose:
                        --- Percebi que , como a natureza, a vida tem suas estações. Vivi um longo verão com Cristovaldo. De repente,  um Outono e um Inverno glacial tomaram conta da minha alma. Os marmeleiros me ensinaram, novamente, a arte do despojamento e, depois, do reflorescer. Primaverei !


04 de Agosto de 2017   

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