sexta-feira, 18 de agosto de 2017

A unção da água


                                              
Houve um tempo em que a luz elétrica ainda não tinha inundado as ruas. Os fantasmas ainda perambulavam  pelos cantos das casas e dos becos assustando os passantes. Os carros ainda não tinham se apossado das vielas e expulsado os burros e as carroças. A rua ainda era o playground   das residências , transformando-se em campo de futebol, em rodas de peteca, em correrias de pega-pega e bandeira. Os dias amanheciam com a lua e adormeciam nos crepúsculos. A luz baça dos candeeiros imprimia um ar meio intimista  e meio sinistro aos ambientes. De noitinha , as cadeiras saltavam lépidas  para as calçadas , rodinhas se formavam, fofocas se debulhavam: a TV ainda não havia hipnotizado as pessoas. Vivia-se e morria-se a prestação. A morte ainda não era servida  em módicas mensalidades nos leitos da UTI.  Os cratenses viam-se nas quermesses, nas bodegas , na missa. A vida era simples , sem arroubos, sem vales ou picos.
                            A classe mais humilde encontrava-se, mais frequentemente, nos chafarizes. Ali iam as donas de casa , diariamente, pegar a fila, com seus vasilhames, com fins de abastecer os depósitos de casa : o pote, a jarra, o tonel,  a bacia. A água ainda não descia, amestrada,  em canos das fontes do pé da serra. Enquanto aguardavam a vez, conversas puxavam conversas, fofocas fluíam , como a água do chafariz. “Vitalina , minha comadre, parece que tá buchuda de um comerciante da Rua Grande !”  “Hercília, tem saído de casa de tardezinha, dizendo que vai buscar lenha no cafundó. Acho que anda costurando pra fora!” “Marreco, ontem, furou dois cabras!” Água escorrendo, latas d´água na cabeça, lá iam subindo as mulheres ladeira acima. O chafariz era o grupo de WhatsApp da época.
                            O chafariz era um anexo das nossas fontes do pé da serra. O murmuro das águas impregnava a vizinhança de uma tranquilidade de  levada corrente. Transeuntes lavavam-se, banhavam-se,   aplacando o calor do dia a dia. As vidas pareciam mais líquidas, fluindo lentamente sem estertor e sem cascatas à medida que as horas serpenteavam , sem pressa,  em direção à foz crepuscular. As pessoas , mais úmidas, imantavam-se um pouco da limpidez da água. As almas faziam-se mais transparentes como se ungidas , novamente, em pia batismal. Ao voltarem para a pobreza de suas casas, apaziguados e bentos pelas águas de Oxum, os espíritos pairavam por sobre a miséria: como se as águas  já se lhe bastasse. Como se o dilúvio  já não existisse, como se alguém gritasse “Terra a vista ! ” e a pombinha acabasse de retornar com o galho de oliveira dependurado no bico.


18/08/17


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