sexta-feira, 24 de janeiro de 2025

Golpe em Matozinho

 

O Renascimento da Cultura Popular Brasileira: Tradições que Resistem ao  Tempo 

A vida política, em Matozinho, sempre foi monótona como as incelenças de Chica Rasga-Mortalha. Duas famílias se alternavam no poder:  os adeptos de Pedro Cangati e os descendentes do velho Juvenal Chinchorro.  Na vila, todo mundo sabia exatamente quem participava do batalhão dos Cagaprati e dos Cachorros, como, popularmente as facções ficaram conhecidas. Claro que, periodicamente, havia deserções de lado a lado, dependendo da gangorra eleitoral do momento. Mudar de um lado para outro, no entanto, impingia ao desertor um ar de fraqueza e desconfiança. Louvava-se sempre aqueles que mesmo “por baixo”  por quatro anos, mantinham o dedo no apito e aguentavam o tranco. Em cidade pequena,  a balança do poder determinava, imediatamente, quem ficaria no inferno ou paraíso: aos amigos as facilidades da lei, aos inimigos os rigores dos códigos penal e civil. Essa pouca alternância das forças políticas, se arrastando por mais de trinta anos, apesar da aparente novidade dos candidatos, levava , em pouco, a se entender que só dois prefeitos, na realidade governavam durante todo esse tempo: ou se ia para sentina com os Cagaprati ou se esperava a mordida dos Cachorros.

                   Um dia , no entanto, para desespero do poder local, um candidato novo resolveu entrar no páreo. Aderaldo Jurema chegara há uns cinco anos em Matozinho. Nascera ali, mas, na  seca braba de 1958, ainda meninote, escapou para o Sul, num pau de arara. Quase morre de sede e da fome só escapou por conta de iguarias como mucunã e palma chamuscada. Pagou todo o karma de incontáveis encarnações, em São Paulo. Servente de pedreiro, camelô, pastorador de carro,  vigia de prédio, comerciário. Desarnado, juntou uns poucos trocados  e estabeleceu-se com uma pequena vendinha, num bairro periférico, um amontoado de pobres figuras que, depois, aumentaria de tamanho com a desigualdade e pobreza e se tornaria Brasilândia. Ali , pouco a pouco, foi se apossando de terras ainda meio devolutas, aumentou o número da famosa “ A Barateira do Norte” e tornou-se remediado. Na balança de Brasilândia era um homem rico. Claro que a riqueza é sempre relativa: em terra de esfomeado quem tem uma broa é rei.

                   Aderaldo casara com uma nordestina, de pouco estudo,  mas de uma capacidade de trabalho imensa. Administrava a casa como  uma empresária e ainda sobrava tempo para acompanhar as lojinhas e cobrar os aluguéis dos imóveis. Um fato, no entanto, o fez abandonar a vida próspera, arrumar os teréns e voltar à sua Matozinho. O tráfico de drogas começou a tomar conta do seu bairro. Cobravam dele cumplicidade, taxas de segurança e investimento na empresa que se instalava. Aderaldo passou a se virar como era possível, espremido que ficou entre os traficantes e a polícia,  e não dava para saber que lado era o pior.  A gota d´água a entornar o seu copo de amargura, no entanto, aconteceu quando um dos seus filhos, Viriato, se viciou e terminou chacinado por dívidas para com  a Boca de Fumo. De comum acordo com D. Marivalda, com quem dividia a outra banda da macaúba, venderam o que tinham, bem abaixo do preço de mercado, e voltaram para Matozinho.

                   Aderaldo chegou na sua terra natal com uma aura de vencedor. Aura a que , na verdade, fazia jus. Se em Brasilândia já era tido como estribado, em Matozinho, então, apareceu como um Jeff Bezos. Reiniciou a vida com a “Barateira”, ramo que conhecia bem. Se a loja não era tão próspera, como em São Paulo, seus gastos diminuíram vertiginosamente. De bom coração, sobrevivente também da miséria nossa de cada dia, ajudava muito a quem o procurava. Aderaldo, longe da seara política local, que sabia caminho escorregadio e pantanoso, comunicativo e dado, tornou-se muito popular na vila e redondezas.

                   Sinderval Bandeira, o prefeito de Matozinho, aliado dos Cagaprati, estava já no terceiro mandato, quando aconteceu uma falha inexplicável. Na vila, político roubar nem sequer se considerava crime, o grande problema era ser pego no flagra. Pois bem, o governador do estado, em período pré-eleitoral, veio a Matozinho em campanha, junto com a primeira dama.  Dormiram na casa  de Sinderval, um bangalô suntuoso, localizado nas margens do Rio Paranaporã. Pois bem, sabe-se lá como, pela manhã, D. Eufrazina Gadelha, a primeira dama do estado,  deu por falta de um colar de pérolas e uma bracelete de ouro que tinham sido presente do marido nas suas Bodas de Ouro. A madame abriu o berreiro , como gato na capação. O certo é que foi convocada a polícia do estado e, após investigação minuciosa, deram   com as joias dentro do cofre de Sinderval. Não havendo outro jeito, o prefeito devolveu o furto e espalhou a versão de que tinha sido uma manobra dos seus inimigos políticos para prejudicar a candidatura do seu candidato: Aurismar Santiago, contra o Cachorro Eulino Catonho.

                   É nesse exato momento que , ante a mentira deslavada e o contrapé de Sinderval, a capenga oposição à alternância eterna Chinchorro-Cangati, convenceu Aderaldo a lançar sua candidatura, correndo por fora. Quando a coisa apertou, na reta final, os eternos rivais das campanhas de Matozinho, se juntaram em prol da candidatura de Aurismar. Espalharam , por todo canto, que haveria roubo e compra de votos por parte de Aderaldo.  Abertas as urnas, no entanto, pela primeira vez na história dessa Matozinho, com uma diferença de apenas 57 votos, Aderaldo foi eleito prefeito . A vila fez  uma festa maior do que a de N. S. dos Desafogados !  

                   De alguma maneira os eternos vencedores , em algum momento da campanha, temeram pelo pior. Tanto que Sinderval reforçou a guarda  municipal que se resumia em três samangos que passavam o dia pegando moscas na delegacia. Contratou mais quinze guardas sem muito treinamento em campos de conflito, mas com uma qualidade que ele considerava imprescindível: obediência cega  a sua ordens.  Os Cagaprati e Cachorros , como sempre, acreditavam no risco da prefeitura ser entregue ao lado oposto, nunca, porém , chegaram a imaginar uma tragédia do porte que tiveram pela frente: ganhar um forasteiro que, segundo eles, nenhum traquejo tinha na administração de Matozinho.

                   O baque foi imediato de lado a lado. Quatro anos sem poder meter a mão no dinheiro público,  empregar os apaniguados, ter que tirar do próprio bolso para pagar a feira, a gasolina, a energia elétrica, a água. Aquilo era um despautério! Os inimigos figadais se reuniram , Sinderval,  Aurismar e Eulino. Pesaram as perdas e chegaram à conclusão que estavam mais lascados do que  o beiço de Chico Goela de Lobo, o magarefe da cidade. Tinham que fazer alguma coisa. Tentaram embargar a posse sob pretexto de que Aderaldo comprara votos com verba fornecida por traficantes de Brazilândia. Entraram na justiça, mas, sem provas suficientes, a teoria conspiratória veio abaixo e o juiz Olímpio Matagão arquivou o processo. A medida fez com que os funcionários da administração de Sinderval  , os Cagaprati e Cachorros criassem um ranger de pitbull  contra o magistrado. Pensaram em recorrer à capital, mas Sinderval lembrou que sofreria o embargo do governador que, por pouco, não viu a mulher desjoiada em Matozinho. Em nova reunião, agora incluindo o delegado e chefe da guarda municipal, Ildefonso Lambe Botas,  o delegado, ar impávido de quem parte para o front, foi categórico. O tempo urgia ! A posse de Aderaldo estava marcada para dali a quinze dias. Só tinha um jeito!

                   --- Temos que eliminar os alvos ! Pelo bem de Matozinho !  Contra os comunistas que querem açambarcar os cofres públicos ! Vamos dar uma rasteira em Aderaldo, no vice  Onegildo da Caçuleta e no juiz corrupto Matagão ! Aí serão convocadas novas eleições , os Cangatis e Chinchorros voltam à disputa. Que ganhe o melhor !

                   Depois, numa convocatória mais reservada com apenas Ildefonso, Sinderval , Aurismar e Eulino, começaram a traçar a estratégia salvadora da heroica terra de Matozinho.  Podiam criar uma balbúrdia na cidade encabeçada por adeptos políticos das duas facções. A guarda municipal, com seu exército de vinte samangos, seria chamada para coibir o quebra-quebra.  Possivelmente o juiz Matagão apareceria para tentar desarmar a revolta e seria abatido com um tiro de soca-soca disparado por um preposto de alguma janela escondida da rua. No meio do quebra –quebra parte da  turba prenderia Onegildo e o afogaria no açude do Sabugo. A versão oficial diria que ele tentou fugir, pulou no açude, no meio do arranca-rabo e terminou se afogando. Uns dias depois, por fim,  alguém entregaria uma lata de doce de leite a Aderaldo que era viciado na iguaria. Só que já viria temperado com tingui. O prefeito eleito bateria as botas e espalhariam a história de que tinha morrido empanzinado. Resultado, terra devastada, limpa: novas eleições. E o retorno das duas chapas de sempre à disputa de cartas marcadas.

                   O plano parecia perfeito e fadado ao sucesso e à pouca desconfiança. O grande problema residia nos executores: a Guarda Municipal ( Exército local) e  lldefonso  ( o chefe do GSI , o Mosad de Matozinho).  A primeira fase da intentona andou perto dos conformes. Num domingo se reuniram na estrada de Bertioga e vieram em passeata em busca de Matozinho. Adeptos dos Cangati e Chinchorro, aparentemente sem líderes mais destacados. Carregavam foices, enxadas e estrovengas invadiram a praça da matriz e fizeram uma quebradeira danada na Câmara de Vereadores , na Prefeitura e no Fórum. A Guarda Municipal ficou quietinha no seu canto, sem se envolver no quebra-quebra. Deram a justificativa, depois, que não estavam armados o suficiente para enfrentar a multidão. Como era de se esperar, o juiz Matagão , quando da invasão do Fórum,  tomou a frente. De uma das janelas, o soldado Bil  Caldo de Andu , pronto pra emboscada,  mirou no peito de Matagão, mas , por duas vezes a soca-soca , de pouco uso, bateu catolé. Ele, então, recarregou a arma, aumentando a dosagem da pólvora. Na terceira tentativa houve um estampido, subiu um fogaréu danado e o pistoleiro saiu todo preto do meio do fumaceiro, só com a coronha da espingarda na mão. Até hoje o cano não foi recuperado e, passados dois anos, o ouvido de Bil ainda pia como se carregasse um balaio de pinto. Caldo de Andu foi a única vítima da tentativa de assassinar Matagão.

                   A turba de malfeitores conseguiu entrar na casa de Onegildo e o levar para as margens do açude do Sabugo. Esqueceram, porém, que naquela época do ano, estava seco e nem lama tinha no porão. De há muito tinha batido piaba. Estava escuro quando chegaram na beirada e ao jogaram Onegildo dentro, ouviram só um baque seco e a corrida do homem carrasco adentro. Ele, depois, se tornou a principal testemunha que redundou na prisão dos vândalos mais importantes.

                   Restava a terceira fase que ficou a cargo pessoal do mais taludo dos espiões matozenses, o Poirot local : Ildefonso Lambe-Botas. Esfriados os ânimos, após a derrocada de golpe de estado, Aderaldo recebeu, em casa, uma compota de Doce de Leite, cujo portador disse tinha sido um presente de Zabé do Quebra-Queixo, a maior doceira da cidade.

                    Os dias se passaram e não se teve notícia do passamento de Aderaldo e nem de qualquer notícia de mal-estar ou sobroço. Lambe-Notas mandou seu serviço secreto averiguar. Aderaldo, segundo a empregada da casa, comera o doce todo  que até se lambuzara. O delegado mandou, então, refazer o trajeto do doce desde a saída da casa de Zabé até à mesa do prefeito eleito. O responsável pelo entinguizamento do doce tinha sido Totonho Tiú, o Ouvidor Geral de Matozinho, que era surdo como uma porta. Severo, o soldado que levara o doce até ele para o devido envenenamento, informou que a ordem tinha sido clara e gritada em tom de locutor de vaquejada:

                   --- Totonho, taqui o doce. Bote o tingui como bota palma pra gado!  Cuide,  seu mouco!  ! Pode atochar !

                   Segundo levantou o GSI de Matozinho, o problema foi de interpretação. Totonho entre um an-an-an-an danado entendeu diferente a ordem, com sua audição de tiú:

                   --- Totonho, taqui o doce ! Não venha com qui-qui-qui, seu veado ! Bote  coco  pra melhorar !

                   No fim de semana, Zabé, sem entender bem o que estava acontecendo,  recebeu um envelope com  cinquenta reais e um bilhete do Aderaldo:

                   --- Zabé, dessa vez você se superou, nunca vi um doce tão gostoso como esse que vc me mandou semana passada ! Deu água na boca !

 

Crato,  13 de Janeiro, 2025

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