“Quem come do fruto do conhecimento,
é sempre expulso de algum paraíso.”
Estamos na Sexta-Feira Santa, um dos dias mais sombrios e opressivos para quem vive nessa banda mais ocidental da Terra. Mesmo para os agnósticos e para os não cristãos, é impossível livrar-se daquele sentimento de culpa, quando contemplamos o Cristo no seu crucifixo. De alguma maneira nos bate a certeza de que cada um de nós foi responsável pelo crime perpetrado, dois milênios atrás, na Galileia. Esse parece-nos sempre um outro pecado original, bem mais pungente do que aquele outro que nos foi atribuído por nossos ascendentes biológicos por terem degustado os frutos da árvore do bem e do mal, no paraíso. A transgressão do Éden , no fundo, fez com que nós pudéssemos andar com nossos próprios pés e, como um adolescente que saísse da casa dos pais, ganhamos o mundo com todos os encantos e riscos que essa atitude nos proporcionou. O remorso e o pesar pelo delito do Gólgota nos ferem bem mais do que o do Gênesis. Qualquer um de nós percebe-se uma espécie de centurião, eternamente oferecendo o fel e a coroa de espinhos ao Rei dos Judeus.
Acredito, no entanto, que subsistem outras razões para um remorso tão duradouro e que ultrapassa em muito as fronteiras da fé cristã. É que a saga do Calvário continuou a se repetir , em incontáveis outras apresentações, na história da humanidade. Mudam os atores e a relevância dos seus papéis, mas o roteiro não é tão diferente. Existe uma cruz fincada eternamente em algum morro, esperando por alguém que ouse pensar um caminho diferente daquele traçado pelas forças políticas e econômicas vigentes. E é fácil lembrar de alguns dos crucificados: Antonio Conselheiro, Che Guevara, Beato Zé Lourenço, Giordano Bruno, Miguel Servet, Nélson Mandela, Josué de Castro, Padre Antonio Henrique Pereira... Nada mais arriscado do que sair do bando e mostrar a possibilidade de outros caminhos , outras veredas, outros horizontes... A ovelha negra fica sempre mais visível e destacada para a sanha do leão.
Nesta peça humana, os personagens também se repetem com diferentes protagonismos e nuances. Há sempre um juiz parcial que joga para a plateia no feitio de Pilatos. A predileção por Barrabás nas eleições populares continua bem presente. Existem sempre os discípulos mais queridos e fiéis mas que, na hora do aperto, não têm o pejo de negar o seu mestre por três ou muito mais vezes. A tortura, instrumento cruel e desigual no jogo dos poderosos contra os indefesos, repete-se em novas chicotadas e coroas novas de espinhos. E os torturadores são até exaltados ! Os ladrões , nos novos palcos, já não são crucificados com os revolucionários, eles estão felizes e incólumes na plateia, batendo palmas e soltando balões. E os Judas, categoria fértil, se multiplicaram, estão presentes em muitos departamentos, em muitas esquinas, em muitas repartições e, por conta da inflação galopante, cobram caro. Saudades daqueles tempos dos trinta dinheiros ! Do outro lado , sempre é bom lembrar, existem ainda a misericórdia das Marias, a solidariedade dos Arimatéias, o desvelo dos Simões ! Mas, em toda etapa da nossa história , desde aquela Sexta Feira tenebrosa, sempre houve um novo Cristo, num novo Gólgota, gritando desesperado, a todos pulmões :
--- Pai, Pai, por que me abandonastes ?
O mais desapontador, no entanto, são os destinos do sonho sonhado pelo revolucionário da vez, depois que seu corpo é levado à catacumba e, após algum tempo, com sorte, ressuscita. O enlevo já não é o mesmo nas mãos de muitos novos discípulos; os livros sagrados perdem seu encanto original, têm interpretações enviesadas e esdrúxulas e ganham ares de profano; os bezerros de ouro voltam a ser adorados em muitos altares; a transgressão empanturra-se em vinhos de apatia e conformismo. E a humanidade continua , enfastiada, esperando por um sábado sempre longínquo e inalcançável onde possa clamar: Aleluia !
Crato, 15/04/2022
3 comentários:
Texto perfeito. Melhor texto produzido neste momento crucificado entre COVID e Ucrânia. Talvez a ovelha negra preferisse ser chamada de desgarrada. Parabéns.
Abraço, Batista e obrigado pelo retorno.
Infelizmente continuamos os mesmos. Os Santos de outrora, são mais reais, na nossa memória seletiva. Cronica bem realista! Muito bem, Dr. Jose Flavio.
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