Onerildo postou-se diante do pequeno terreninho, totalmente devastado pelas chuvas recentes de março. O açudeco minguado sequer aguentara as primeiras enchentes e já correra para o mar. A casinha resolveu partir junto com as águas, muito provavelmente em solidariedade ao amigo. A rocinha de milho, que já embonecava, também viu-se arrastada pela cheia, assim como os canivetes de feijão que se viram, rapidamente, desembainhados. Onerildo viu-se , assim mesmo, resignadamente como um novo Sísifo, sempre reiniciando seu trabalho em moto contínuo. Os filhos e a mulher levara para a casa dos sogros que moravam no alto. E ele ali estava olhando tudo de cima, como um Noé que contemplasse o infinito esperando o retorno do pombo com seu ramo de oliveira.
À noite, deitado numa rede na varanda , custou cobrar o sono. Lembrou do desmantelo no mundo: enxurradas em muitos lugares, secas brabas em outros, incêndios em florestas, neve caudalosa em alguns países. Que diabos estava acontecendo com o mundo ? Petrópolis, a Bahia, Minas boiando... vira na televisão. O Pantanal esturricado pegando fogo. A Amazônia, a Austrália e a Califórnia em chamas. Quem diabos é que era o responsável por esse departamento climático em nível celestial ? São Pedro , talvez pela idade, já perdera a capacidade de fazer a regulagem, a sintonia fina. Ou entregara a algum pinguço a responsabilidade, pois a coisa andava mais desmantelada do que acidente de helicóptero. Quando a chuvarada começou, lá pras bandas do Sul, já colocou as barbas de molho. Pegou-se com São Floriano, o protetor das enxurradas e comprou, sob orientação do padre Arcelino, uma imagem do santo, em Juazeiro. Colocara-o no oratório. Soube depois , por amigos, que a imagem descera na enchente, viram-na em cima de uma porta, correnteza abaixo ! Gritando: Valei-me , meu padre Cícero ! Temia que até o velho Floriano tivesse morrido afogado.
Quando as águas baixaram, Onerildo foi à cidade, comprar alguns mantimentos. Pôs-se a observar a terra devastada. As casas destruídas tinham sido justamente aquelas mais simples, os barracos de taipa. As mansões grandes das fazendas estavam intactas. Os açudes arrombados haviam sido , justamente, os menores que correram , pelos riachos, para os maiores e, apenas, avolumaram ainda mais suas águas e a sua quantidade de peixes. Nas ruas, viu meninos pedindo esmolas e comida e, nos mercadinhos, senhoras despreocupadas comprando rações para seus cães e gatos. A esposa do Cel. Anfrízio Maia, inclusive, confortava os meninos esfomeados, lembrando-lhes de que não havia mal que não viesse para o bem. Agora, eles poderiam fazer dieta e melhorar a saúde.
Onerildo retornou com uma certeza pungente. A regra do mundo não era a harmonia, mas a desigualdade. Enchente-Seca, Fome-Desperdício, Riqueza-Miséria, Felicidade-Desgraça, Verde-Fogo, Vida-Morte pareciam pratos de uma mesma balança. Um precisava existir para que o outro sobrevivesse. Aquele desse se alimentava, como o carrapato no lombo da vaca. Como se a cadeia alimentar tivesse apenas saltado das savanas africanas para as ruas agitadas das metrópoles. A única lei em pleno vigor era a do mais forte, do salve-se quem puder, do que quem for podre que se estilhasse. As avenidas são apenas uma selva remasterizada, lá vivem os mesmos animais da nossa fauna tradicional: cordeiros, chacais, leões, lobos, macacos, antílopes. Só que são bípedes, falam línguas estranhas e alternam-se, facilmente, entre os predados e os predadores da vez.
Crato, 22/04/2022
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