sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Nos Tempos dos meus Avós

 

No tempo dos meus avós, a palavra empenhada carregava consigo ares  de coisa sagrada e irremovível. Nem necessitava presença de testemunhas ou carimbo de cartório. O que foi dito estava escrito , como hieróglifo, nas paredes de um templo. Promessa feita era promessa cumprida, mesmo que sobre trancos e barrancos. Depois é que apareceram os políticos...  E havia lá, muitos anos atrás,  os extremados: aqueles que sob um mínimo empurrãozinho, frisavam o cenho, fechavam a cara e resolviam que a partir daquele momento pau era pedra e mingau se tratava de aço inoxidável. Estes dias, numa rede social, o escritor/pesquisador cratense Heitor Feitosa trouxe à baila, uma história de um desses “opiniosos” de carteirinha. Apelidado de Cirilo Grude, a figura que morava na Santa Fé. Consta que era remediado e excêntrico e, com mania de limpeza, usava uma roupa pela manhã e outra à tarde. A mulher reclamou daquele exagero que demandava muito trabalho na lavanderia e muito esfrega-esfrega. Cirilo, prontamente, disse que se o problema era aquele, estava resolvido. A partir daí, passou a vestir apenas a mesma roupa, diariamente, não trocava até que estivesse totalmente  em  frangalhos. O Grude que o acompanhava nos panos  terminou virando sobrenome.



                        Ramiro Maia, um dos maiores livreiros do Crato, contou-me que na construção do Grande Hotel, ali na Siqueira Campos, nos anos 40, um construtor havia empreitado a obra com o proprietário José Teles. Uma inflação galopante, à época, fez com que, imprevisivelmente, todo o material de construção quadruplicasse o preço. O construtor, um pobre mestre-de-obras, levou a construção até o final. Terminou falido, mas não quis voltar atrás no negócio acordado.

                     Essa inflexibilidade era bem típica dos coronéis do Nordeste. Um dos últimos de Pernambuco, o Cel. Chico Heráclito de Limoeiro, falecido em 1974,  carregava consigo incontáveis histórias parecidas. Já idoso, promoveram na cidade um jogo de futebol entre Limoeiro e a vizinha Nazaré da Mata. Chico não conhecia bem as regras do futebol, mas ali estava apoiando sua cidade e, também, trazendo a autoridade necessária para que não houvesse qualquer possibilidade de tramoias que prejudicassem o glorioso Limoeiro Football Club. Partida duríssima, transcorreu num zero a zero incômodo, até que, no finalzinho do segundo tempo, o juiz cai na besteira de marcar um pênalti contra o Limoeiro. Um assessor do Coronel corre e explica o que estava acontecendo e a tragédia prenunciada: perder para o Nazaré, dentro de casa! O Coronel quis saber que diabos era pênalti e o assessor explicou que botariam a bola naquela marquinha, defronte da trave, e chutariam direto pro goleiro. Com quantos na barreira ? -- quis saber o Coronel. Sem ninguém, vai ser gol certo, alertou o secretário. E aí, como é , o senhor vai deixar, Coronel ? Chico matutou um pouco e, respondendo, disse que tinha dado sua palavra que a lei seria mantida. O juiz marcou, tá marcado, ele é a autoridade máxima no campo, tem que bater o pênalti !  O assessor se agoniou: Mas Coronel, nós vamos perder ! Não é justo ! Chico, então, saltou de seus coturnos. Perder ? Perder ? Tu tá doido ? Vai bater o pênalti, sim , mas do outro lado, contra o Nazaré ! E  já de 38 na mão, avisou: a lei será cumprida, mas do lado de cá, num tem filho de uma égua nesse mundo que bata pênalti contra nós ! É preparando a bola  e a bala zunindo !

                        Aqui no Cariri, o Coronel Nélson Alencar , do Lameiro, tinha palavra pétrea. Era correto e nunca se soube de qualquer ato seu que se afastasse um milímetro da palavra empenhada. Contam que ainda menino, na cozinha de casa, queimou-se numa trempe do fogão. A mãe, então, reclamou: Também não sei o que quer menino em cozinha ! O filhote de coronel retrucou: Também não sei , minha mãe ! Desde aquele dia nunca mais, na vida, pôs os pés numa cozinha. Contam  -- e aí nunca se sabe quando a coisa é verdadeira ou já se banha de folclore—que a esposa , no quarto, grávida do primeiro filho, sofria com as dores do parto e , ao ver o coronel próximo, entre uma e outra contração, gemeu: “Estou sofrendo por sua causa !” O Coronel , calmamente, teria dito: “Pois se acalme, essa é a última vez que vou lhe fazer sofrer!” Verdade ou não, o certo é que a prole do nosso Nélson ficou apenas no primeiro rebento.

                        O meu avô Vicente Vieira, lá da Lagoa dos Órfãos, em Várzea Alegre, tinha um Engenho de Cana de Açúcar e fabricava rapaduras. Um dia, irritou-se porque alguns compradores levavam a mercadoria e ficavam de vir pagar depois e não apareciam. Ele fincou pé  e jurou que daquele dia em diante nunca mais venderia fiado.  Essas determinações pétreas e inflexíveis  não são fáceis de manter, por conta da possibilidades de exceções que comumente aparecem. Dias depois, chegou um sobrinho e afilhado do velho Vicente que era acostumado a comprar rapaduras , vezes a vista, vezes para pagamento posterior. O velho nunca tivera problemas com ele. O afilhado completou a caminhonete e, passando defronte da casa, apenas avisou : -- Padrinho, vou levando dez cargas ! Na quinta venho acertar !  Meu avô, então, lembrou da palavra dada anteriormente de que só venderia a vista. Por outro lado, sentiu-se constrangido em confrontar o rapaz que , além de parente e apadrinhado, nunca lhe tinha trazido problemas.  Pediu que o sobrinho aguardasse um pouco. Fez um cálculo rápido do valor da dívida. Foi no cofre, rodou o segredo para um lado e para o outro, abriu, tirou os dois contos de réis. Foi até ao carro e entregou  ao afilhado. Que diabos é isso , tio ? O velho Vicente, então, desvendou a solução que encontrara para não esfacelar a promessa. Estou te emprestando o dinheiro para você pagar a rapadura. O rapaz recebeu, meio confuso, o dinheiro nas mãos. Vicente disse: agora me pague ! O sobrinho lhe devolveu o dinheiro.

                        -- Pronto ! Tá pago ! Emprestei o dinheiro a você ! Pra você eu empresto ! Agora fiado, fiado não vendo mais rapadura é nunca !

 

Crato, 17/02/2022                        

 

 

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