“Que coisa estranha sinto!
Parece-me
Que finíssimos fios
invisíveis
De um fluido qualquer
Arrastam-me
Suspendem-me aos
poucos
Para uma estranha e
vaga região
.................................................
Já
nada sinto
Nada sou
Repouso
No Abismo do Sono. “
Edmison Félix ( “Minha Barbalha”)
Nasci meio predestinado a nunca
ganhar no Jogo do Bicho. É que quase não sonho, ou não guardo lembranças do que
sonhei em tempo de vigília. Em compensação, acordado sou um sonhador
inveterado, mas descompasso me impede de
prever alguma pule vitoriosa. Pois,
nestes dias, sabe-se lá como e porque, sonhei com um ex-professor meu de língua
portuguesa do Colégio Estadual Wilson Gonçalves, nos anos sessenta. Não me
ficaram detalhes , apenas fragmentos , como a projeção de slides na minha
memória. Mas foi-me suficiente para revolver a poeira do baú e ressignificar a
sua atuação na minha formação intelectual e, certamente, na de muitos da minha
geração. Devo a ele muito do meu amor pelos livros e pela poesia.
Nascido em
Barbalha, em 25 de Junho de 1940, Edmison Félix, se não nos tivesse deixado em
2016, teria ingressado na oitava década. Advindo de humilde família, negro, o menino Félix , para
fazer jus ao nome, teve que enfrentar dois terríveis preconceitos : a pobreza e
a negritude, com a última arma que possuía : a sua inteligência. Não lembro ,
deste período, qualquer outro mestre que carregasse dois fardos tão pesados aqui
na região. Foi colega de meu pai, o professor Vieirinha, na primeira turma do
Curso de Letras da Faculdade de Filosofia de Crato. Vitorioso no concurso para
professor de português do Estado do Ceará, descobriu-se doente, no exame de
Abreugrafia, e precisou tratar-se da
doença romântica dos poetas, antes de assumir o cargo. Diferenciava-se dos
demais docentes de sua época, geralmente com sólida formação teórica gramatical de egressos do
Seminário São José. O professor Félix conseguia ver além das rígidas regras da
Gramática formal. Desenvolvia habilidades artísticas , introduzindo a música, o
teatro, os jograis , o incentivo à criação de jornais murais. Sessões artísticas semanais
nas classes faziam com que os alunos apresentassem suas vocações artísticas.
Ensinava rimas e métrica, suas tarefas envolviam apreciação e desenvolvimento
de textos, confecções de poesias, canto, formação de jograis com recitação
poética ( fiz parte dos Jograis de
Maraquém, por ele criado). Admirava
o parnasiano Raimundo Correia, ele fazia também poemas de versos livres e
sonetos e publicou em 1994 o livro “Minha Barbalha” em que reverencia o seu berço,
com poesias voltadas a figuras populares e às belezas da Terra dos Canaviais. Habilidoso,
compunha músicas e cantava e chegou a participar dos Festivais da Canção do Cariri. Nas horas vagas o professor, à época
solteiro, era um bom copo, entusiasta de serestas, do violão e das noitadas.
Por outro lado, em termos de automobilismo, era uma lástima. Tinha um Gordini
aí pelos idos de 1968 e, numa tarde, bateu o recorde mundial de capotadas de
veículos. Subindo para um banho no Lameiro conseguiu virar duas vezes na subida
e duas na descida do pé da serra. Merecia uma inserção no Guiness.
Aposentado, o
professor Félix enveredou com sucesso pelo próspero comércio de confecções. Nos últimos
anos, quando o inverno da existência chegou com suas tempestades, seus trovões
e seus relâmpagos, chegou a acreditar que perdera muitos dos seus anos
produtivos investindo no prazer da pedagogia e menos na sua saúde financeira. Um
dia, por fim, como no seu poema premonitório, repousou no Abismo do sono. Hoje
é possível perceber que a grande obra de
toda uma vida esteve fundada na transformadora messe do ensinar.
Gerações de alunos beberam do chá do conhecimento e da cultura, que ele serviu por tantos e tantos anos, e isso fez com que se estimulassem
sensibilidades e se estendessem e ampliassem horizontes, abrindo novas picadas,
defenestrando inimagináveis clareiras. O Sono do mestre agora se fez o Sonho de muitos que beberam da sua fonte. Ainda
hoje, mais de cinquenta anos depois, “os fios finíssimos e invisíveis de um
fluido qualquer” ainda nos prendem e preenchem nossos sonhos, como se tudo
fosse real e os ponteiros do relógio tivessem misteriosamente estacado por uma
força desconhecida e enigmática.
Crato,
12/03/21
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